sexta-feira, 5 de maio de 2017

"LÍNGUA MATERNA, LÍNGUA PATERNA"


Marcos Bagno


O linguista Bernard Cerquiglini, em dois de seus livros sobre a história do francês, emprega a expressão língua paterna para se referir ao produto das políticas de normatização que incidem sobre as línguas de sociedades grafocêntricas, como as europeias. Evidentemente, língua paterna se contrapõe a língua materna, um conceito muito difundido e de uso amplo dentro e fora das discussões especializadas. Cerquiglini emprega muito esporadicamente a expressão nos livros citados, mas vale a pena desenvolvê-la um pouco mais aqui, porque me parece uma interessante polarização para entendermos as relações entre linguagem e sociedade.


A língua materna é precisamente a língua da mãe, a língua que cada pessoa começa a adquirir tão logo nasce e cria o vínculo afetivo-linguístico com a mãe (ou, na falta dela, com a pessoa que venha a preencher esse papel). É uma língua puramente oral — falada e ouvida —, mesmo quando provém da voz de uma pessoa altamente letrada. Língua do afeto, do desejo, do íntimo, do sonho, vive à margem dos ditames da norma canonizada. A língua materna é intrinsecamente variável, doméstica, familiar, idioma particular daquilo que em inglês se chama household, um termo que inclui a casa, seus ocupantes e todas as atividades ali desenvolvidas por eles. Quando, na história de cada sociedade, uma determinada língua — ou mais precisamente, uma das variedades dessa língua — é alçada à condição de língua oficial, ocorre uma importante metamorfose — a língua materna se torna língua paterna, transformada em padrão (do latim patronu-, onde está presente a raiz pater- ‘pai’, mesmo vocábulo do qual procedem patrão e patrono). É a língua patrocinada pelo Estado e, irradiando-se dele, a língua da escola — isso explica o choque que muitas pessoas (especialmente os falantes de variedades linguísticas estigmatizadas) experimentam ao tomar contato pela primeira vez com uma língua que, em boa medida, além de estranha é quase estrangeira. A língua paterna é essencialmente escrita, ortografizada, normatizada.


A língua paterna é a língua da Lei, sempre associada à figura do pai, inclusive nos postulados da psicanálise freudiana. A língua materna — língua de mulher — sofre na maioria das sociedades as mesmas depreciações dedicadas ao gênero feminino: é o lugar do “erro”, do “desvio”, do “frágil”, do pouco confiável, do instável, do inconvenientemente sensível e sensitivo. Ao pai cabe domar e domesticar esse idioma errático, conferindo-lhe regras, regimentos, registros, regências, regulamentos — palavras todas derivadas de rex, regis, ‘rei’, assim como recto, direcção, correcção, régua. É a língua do Direito (< derectu-, ‘o que está reto’), erigida como lei linguística. A língua paterna é a língua da erecção, a língua do rei, pai da nação, símbolo do Estado.


Um elemento fundamental nessa padronização é, sem dúvida alguma, a presença da escrita, tomada sempre em sua vertente canônica, douta, literária. Tudo o que tem a ver com a instituição de uma linguagem “certa”, “oficial”, “uniforme”, “normatizada” etc. também tem a ver com o uso intenso da escrita. Daí advém o uso tradicional da expressão norma culta, identificada sempre com a linguagem escrita mais formal, mais monitorada, de preferência com pretensões “literárias”. As sociedades que são fortemente letradas, isto é, em que a cultura escrita é onipresente e supervalorizada, são também aquelas que ostentam instituições com grande poder centrípeto sobre as forças de mudança da língua. O linguista canadense J. M. Paquette explica de que maneira a normatização da língua se associou estreitamente à normatização jurídica durante o período da história europeia em que os Estados nacionais se fortaleceram e se sentiu a necessidade de todo um corpo de instituições e de funcionários capazes de elaborar normas, regulamentos e leis, processo que exigiu, simultaneamente, a uniformização das ortografias e a padronização das regras gramaticais:



tanto quanto possamos apreender suas origens na história, o serviço da chancelaria real já pode ser percebido como um universo da escrita estreitamente ligado à atividade jurídica. Não há mais dúvidas, a seguir, de que, na história das diversas chancelarias da Europa, assim será até nas épocas mais recentes — mas é interessante observar que desde sua emergência na história das instituições, o conjunto das funções da chancelaria vinculam a escrita e o direito.



Não é por mera coincidência, então, que também neste período (séculos XIV-XVI) tenham sido escritas as primeiras gramáticas normativas das línguas europeias. Esse vínculo estreito entre escrita e direito é o que explica por que as gramáticas normativas “se apresentam até os nossos dias sob a forma de um verdadeiro código de direito, com a regra, os parágrafos, os artigos, as exceções quanto aos exemplos tirados dos autores” — segundo Paquette, “é porque elas têm mais ou menos uma função análoga à da jurisprudência”.


A masculinidade da língua padronizada é explicitada no célebre introito da gramática de João de Barros (1540), em que o autor escreve que os antigos definiram a palavra gramática como “hũ módo çérto e iusto de falár, & escreuer, colheito do uso, e autoridáde dos barões doutos”. “Barões” é outra forma de “varões”, ou seja, homens, pois são eles — e jamais as mulheres — os conhecedores e praticantes do “modo certo e justo de falar e escrever”.


Uma vez instituída fora do lar, na esfera pública, a língua paterna logo encontra seus defensores, eminentemente masculinos, capazes de preservá-la em sua pureza. É o trabalho sempre trágico e desesperado dos puristas. Nas palavras de Cerquiglini,



atentar [contra a língua paterna], por meio de algumas reformas (reajustes ortográficos, feminização dos nomes das profissões), ou pela tolerância para com as palavras estrangeiras não é somente ofender o uso, é desatar os fios do eu. A novidade induzida dispara uma reação cuja regularidade quase predizível, cuja sinceridade decerto, cuja violência por vezes, mostram que a correção gramatical não é só o que está em causa. Inversamente, amar e defender a norma, mesmo incoerente, vale por atestado de cidadania, penhor de adesão à comunidade nacional [...]



A língua paterna se ergue como patrimônio a ser preservado. Vem devidamente codificada nas gramáticas e catalogada nos dicionários. É a norma-padrão, identificada com a Pátria. A língua materna vive à margem da Lei, no interior das casas, não deve sair do gineceu. No entanto, é nesse mundo desprezado (ou alvo de paternalismo condescendente) que pulsa a força vital da língua, seus processos de mudança, suas metáforas, sua interminável poética. É nele que vamos conhecer, não mais a língua do Estado, porém o real estado da língua.


Quando dizemos, por exemplo, que desde o México, na América do Norte, até o extremo sul da Argentina, às portas da Antártida, se fala “espanhol”, é à língua paterna que estamos nos referindo, um espanhol padronizado, neutralizado em suas diferenças. Na vida íntima dos povos, contudo, esse espanhol não existe: existem incontáveis variedades maternas que, quando comparadas, constituem verdadeiras línguas diferentes entre si. É inconcebível que num território tão vasto, com ecologias tão diversas, populações resultantes de um sem-fim de mestiçagens em sociedades com história política e cultural muito distintas, se fale uma só e mesma língua. E nem é preciso comparar dois países autônomas: num só México, vasto país com seus 120 milhões de habitantes, as variedades de “espanhol” formam uma gama numerosa e diversificada.


O mais interessante em tudo isso é que, tradicionalmente, o rótulo “língua materna” é aplicado, sobretudo no ensino, a uma idealização de língua, a um modelo padronizado, justamente o que chamamos aqui de língua paterna.


É claro que essa língua paterna tem sua importância social e cultural e que, quando bem identificada, deve ser o instrumento da educação institucionalizada. O grande problema é que, nessa supervalorização da língua normatizada, tudo o que não se encaixa nesse modelo pátrio é lançado no inferno do “não ser”, do “isso não é português”. As conquistas feministas dos últimos cem anos podem servir de exemplo para a reavaliação e reformulação das relações língua-sociedade. Podemos tranquilamente conviver com a língua paterna sem precisar desprezar a língua que aprendemos em casa, com a nossa mãe, língua que absorvemos junto com o leite materno e – por que não? – desde o útero.


Fonte: http://e-proinfo.mec.gov.br/eproinfo/blog/preconceito/lingua-materna-lingua-paterna.html





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