sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

A linguista da língua como ela é

 

Maria Helena de Moura Neves: “O que leva um povo a elaborar a gramática de sua própria língua?”

Divulgação / Editora Unesp

Um dos principais nomes da linguística no Brasil começou sua carreira universitária com quase 40 anos, após mais de duas décadas dedicadas às aulas de língua portuguesa no ensino fundamental e médio. Maria Helena de Moura Neves, que morreu em Araraquara (SP), em 17 de dezembro do ano passado, em consequência de um acidente vascular cerebral, já tinha criado seus três filhos quando iniciou a graduação em letras português-grego na Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, em 1967. Tinha 91 anos.

Seu objeto de pesquisa surgiu ainda na graduação, a partir de uma curiosidade que guiaria sua carreira: “O que leva um povo a elaborar a gramática de sua própria língua?”. Com base nessa questão, Neves concluiu o doutorado em 1978, na Universidade de São Paulo (USP). Sob a orientação de José Cavalcante de Souza (1925-2020), defendeu a tese “A emergência da disciplina gramatical entre os gregos”. Antes disso, em 1974, para poder consultar obras de seu interesse, graduou-se também em alemão.

Sete anos antes de se tornar professora efetiva da Unesp, em 1971 começou a lecionar grego na mesma instituição. Obteve a livre-docência em 1984 e, três anos mais tarde, aposentou-se. Continuou, porém, trabalhando na universidade como professora voluntária e, mais tarde, na condição de emérita. Em 2003, passou a lecionar também na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. Era coordenadora do Grupo de Pesquisa Gramática de Usos do Português, cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

A curiosidade acerca do impulso para formular uma gramática foi o que levou Neves a pesquisar os gregos, primeiro povo no Ocidente a formalizar o estudo de seu idioma, de acordo com o latinista Carlos Renato Rosário de Jesus, da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), que foi supervisionado por Neves em um projeto de pós-doutorado encerrado em 2020. No século III a.C., a civilização grega sofria influência de outros povos, como os romanos. A pressão externa produziu uma sensação de que a cultura estava ameaçada e, para preservá-la, a língua deveria passar por um processo de organização e regularização. Foi nesse contexto que surgiram os gramáticos alexandrinos, ligados à Biblioteca de Alexandria.

Essa e outras questões são exploradas no livro A vertente grega da gramática tradicional (Hucitec, 1987), resultante da pesquisa de doutorado de Neves, revisado e reeditado em 2005 pela editora da Unesp. “Esse livro foi o primeiro contato que eu e muitas pessoas tivemos com o trabalho de Maria Helena, ainda na graduação”, relata Jesus. “É uma obra que explora questões filosóficas em torno da gramática, o que abre diversos caminhos de investigação”, afirma. Como professor de latim e interessado em temas ligados à retórica clássica, Jesus conta que a publicação teve grande influência sobre seu campo de estudo.

Em parceria com sua professora de grego na graduação, Daisi Malhadas, da Unesp, e uma orientanda que hoje é docente da mesma universidade, Maria Celeste Consolin Dezotti, Neves organizou o primeiro Dicionário grego-português, publicado inicialmente em cinco volumes entre 2006 e 2010, e reunido em volume único em 2022. Ela se referia a esse trabalho como um dos capítulos “mais significativos” de sua vida profissional.

A trajetória da linguista, que publicou mais de 20 livros, pode ser dividida em três vertentes principais. Os estudos em torno do grego e da gramática clássica constituem a primeira. Segundo o também linguista André Vinícius Lopes Coneglian, da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (Fale-UFMG), esse pode ser considerado o grande “ponto de entrada” de seu pensamento, aquele que orientou e organizou todo o conjunto de suas preocupações teóricas.

A segunda vertente é a da teoria funcionalista da gramática, da qual a professora da Unesp foi também um dos principais expoentes no Brasil. Essa teoria surgiu simultaneamente em diferentes partes do mundo na segunda metade do século XX, quando linguistas passaram a se dedicar às questões da gramática, a partir de suas próprias teorias sobre o modo como as pessoas se comunicam com o idioma, oralmente ou por escrito, segundo Jesus. De acordo com Coneglian, o funcionalismo se distingue das teorias linguísticas tradicionais, como a estruturalista, herdeira do suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913), ou a generativa, criada pelo norte-americano Noam Chomsky, por não pensar a língua apenas com referência a si mesmo. Para os funcionalistas, é preciso entender as estruturas da língua a partir do modo como ele é usado.

“Maria Helena não se filiou a uma vertente funcionalista específica, mas construiu uma visão própria a partir de várias influências”, observa Coneglian. “Sua gramática é organizada com base na construção de enunciados. Categorias como substantivo, verbo e adjetivo são submetidas ao processo pelo qual a linguagem se constrói. Nesse processo, o verbo tem posição central e em torno dele são distribuídos os participantes do enunciado”, resume.

Duas obras são apontadas como fundamentais nessa vertente do trabalho de Neves: a Gramática de usos do português (Editora Unesp, 2000) e o Dicionário de usos do português (Ática, 2002, em coautoria com Francisco da Silva Borba e Sebastião Expedito Ignácio). “O ponto de partida das reflexões de linguagem não são as classes de palavras nem as funções sintáticas, mas aquilo que a linguagem faz no texto”, explica Coneglian. “O que precisamos entender é o que as peças da língua estão fazendo em termos de significado e efeito comunicativo.” Por essa perspectiva, Neves definia a gramática como “cálculo da produção de sentido na linguagem”.

Essas duas obras, entre outras, se beneficiaram de projeto desenvolvido no Centro de Estudos Lexicográficos da Faculdade de Ciências e Letras (FCL), da Unesp a partir de 1981, sob direção do linguista Francisco da Silva Borba, também professor da instituição. Trata-se da constituição do banco de dados conhecido como “Corpus de Araraquara”, que atualmente reúne mais de 200 milhões de palavras. O corpus visa captar e sistematizar dados de como o português ocorre em seu uso vivido e inclui textos dos séculos XVI ao XXI, de literatura (romances, contos, crônicas etc.), linguagem técnica, traduções, oratória (discursos, muitos deles de políticos) e imprensa.

“Esse foi um trabalho revolucionário na linguística brasileira”, afirma Coneglian. “Hoje, não está entre os maiores bancos de dados porque, com a internet, existem coleções com mais de 1 bilhão de ocorrências. Mas ele tem as vantagens de cobrir um vasto período histórico e de ser organizado segundo o tipo de texto.” De acordo com o linguista, é um corpus muito bem pensado. “E, de todos os pesquisadores envolvidos, acho que foi ela quem mais o aproveitou em seus trabalhos”, diz.

A terceira vertente da trajetória de Neves é o próprio ensino da língua portuguesa. Um dos livros que a linguista deixou pronto para publicação, em coautoria com Coneglian, se chama Laboratório de ensino de gramática. Destinado a professores em formação inicial e continuada, nos cursos de letras ou pedagogia, deve ser lançado este ano pela editora Contexto. Segundo Coneglian, o livro oferece propostas de exercício a partir de pontos teóricos das gramáticas de usos desenvolvidas por Neves. “Formular exercícios é uma das coisas mais difíceis para o professor que está começando. O aluno de pedagogia pouco aprende a prepará-los”, observa o professor da UFMG.

Um equívoco que Neves costumava apontar no ensino tradicional da gramática consiste na ênfase excessiva na metalinguagem. Para ter um entendimento metagramatical de verbos, substantivos e adjetivos, argumentava a professora, é preciso já ter um conhecimento abstrato da língua bastante desenvolvido. A sistematização em classes e funções deveria ser o ponto de chegada do aprendizado, defendia ela, não seu ponto de partida. Na proposta de Neves, o aprendizado se dá pelos processos que formam os enunciados. A definição das categorias e classes ocorreria em etapa posterior.

Seus colegas e estudantes se referem à linguista como uma pessoa enérgica, que fazia questão de manter uma comunicação constante com orientandos e colaboradores. “Comecei a interagir com ela quando ainda estava na graduação e rapidamente percebi que era muito dedicada aos orientandos”, recorda Coneglian. “Eu ainda nem era oficialmente seu aluno e já nos reuníamos toda semana. Eu mandava textos e ela os devolvia corrigidos.” O pesquisador foi orientando de Neves no mestrado e no doutorado, tornando-se em seguida um coautor constante. “Nós nos tornamos amigos muito rapidamente”, recorda.

“Receber a notícia de sua morte foi como ouvir que faleceu uma pessoa jovem, não uma nonagenária. Porque ela era muito ativa, cheia de projetos e novas ideias”, diz Jesus, que durante seu estágio pós-doutoral integrou a equipe do Mackenzie que realizou um período de intercâmbio na Universidade Gabriele D’Annunzio, em Pescara, na Itália, em projeto iniciado por Neves.

A linguista seguia trabalhando intensamente. Orientava pesquisas, redigia artigos e deixou três livros no prelo. Passou vários meses de 2021 preparando um projeto de pesquisa para renovar sua bolsa de produtividade do CNPq. A aprovação, em 2022, foi uma grande alegria para ela, conta Coneglian. Em fevereiro, recebeu o prêmio Ester Sabino, instituído no ano anterior pelo governo do estado de São Paulo para homenagear mulheres cientistas.

Para Coneglian, o amor à linguagem sintetiza a personalidade de Maria Helena de Moura Neves. Foi uma paixão que começou de forma espontânea durante sua infância no interior de São Paulo – em Taiaçu, onde nasceu e depois em São Carlos, onde cresceu. Seus pais, professores primários, assinavam revistas em espanhol e italiano e ela se dedicava a comparar as estruturas desses idiomas com a do português. Ainda criança, também costumava comparar diferentes edições de Os lusíadas, disponíveis nas estantes de sua família.

Sobre a carga de trabalho, que a levava a jornadas de até 20 horas por dia, a professora não reclamava de peso excessivo. Dizia que envolvia um grande prazer. Seu principal contentamento, porém, vinha da vida familiar, relata Coneglian: Neves gostava de relatar para os colegas os almoços que preparava aos domingos para os dois filhos (o terceiro morreu ainda jovem), sete netos e seis bisnetos, além do genro e da nora, que também considerava como filhos. Era viúva desde 2010.


Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.