A língua portuguesa “projeta uma certa forma de estar no
mundo”
Uma língua é um instrumento de projeção de valores e de
uma visão que é muito própria de uma cultura.
Florbela Paraíba , Presidente do Instituto Camões
ONU News/Sara de Melo Rocha
Florbela Paraíba destaca o trabalho do Instituto Camões na
promoção do ensino da língua portuguesa
Por Sara de Melo Rocha*
16 Maio 2025 Cultura e
educação
Presidente do
Instituto Camões,
Florbela Paraíba, falou à ONU News sobre o prestígio global do idioma; a língua
é oficial para quase 300 milhões de pessoas em quatro continentes, além de
várias organizações internacionais como União Africana, União Europeia,
Mercosul etc.
O Dia Mundial da Língua Portuguesa, comemorado a 5 de maio
pela Unesco, é mais do que uma celebração simbólica para a presidente Camões -
Instituto da Cooperação e da Língua. “É um motivo para fazermos uma reflexão
sobre a nossa língua e o papel que a nossa língua tem no mundo”.
Em entrevista à ONU News, a embaixadora Florbela Paraíba
destacou a importância da língua portuguesa como veículo de comunicação,
cultura, conhecimento e aproximação entre povos. Ela mencionou a Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa, Cplp, as diásporas espalhadas pelo mundo assim
como alundos do idioma.
Rede de ensino do português
O Instituto Camões tem vindo a consolidar uma rede global de
ensino da língua, com 63 cátedras e 86 centros de língua portuguesa em diversos
países. A entidade tem mais de 300 protocolos de cooperação e múltiplas
parcerias com escolas comunitárias e instituições locais.
“É toda esta rede que promove não só o ensino da língua
portuguesa, como a projeção da cultura de matriz portuguesa em todo o mundo”,
afirmou a partir da sede do instituto em Lisboa.
A embaixadora realça ainda a importância da adaptação ao
mundo digital e aos desafios da inteligência artificial. “Temos que ser
protagonistas nesta revolução e não ficarmos reduzidos ao papel de
utilizadores.”
Instituto Camões
Pavilhão de Portugal na Expo Osaka
Língua como identidade
Florbela Paraíba sublinha ainda o papel da língua como
expressão de identidade e valores, sendo mais do que um código de comunicação.
“Uma língua é um instrumento de projeção de valores e de uma visão que é muito
própria de uma cultura.”
Sobre a ambição de elevar o português à língua oficial das
Nações Unidas, ela considera que se trata de um caminho estratégico e coletivo.
“Essa é uma pretensão assumida desde logo pelo governo português e é também uma
pretensão que tem sido muito trabalhada no âmbito da Cplp e com outros
parceiros. É um objetivo comum.”
500 milhões de falantes até 2100
A presidente do Instituto Camões reforça que o português já
tem hoje estatuto de língua oficial em várias organizações internacionais, como
a União Africana e o Mercosul e sublinha o potencial de crescimento. “Estamos a
apontar para um potencial de 500 milhões de falantes até ao final deste
século.”
A língua portuguesa, afirma Florbela Paraíba, continua a
afirmar-se como uma ponte para o entendimento, a cooperação e a diversidade:
“Muito mais importante do que dizermos que temos uma língua rica e promotora da
paz, é que os outros a reconheçam assim.”
O Dia da Língua Portuguesa, celebrado a 5 de maio, foi
criado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa em 2009 e passou a Dia
Mundial após a resolução da Unesco, em 2019.
Leia na íntegra a entrevista da ONU News com a
embaixadora Florbela Paraíba, presidente do Camões – Instituto da Cooperação e
da Língua:
ONU News – Por que é importante celebrar o Dia
Mundial da Língua Portuguesa?
Florbela Paraíba - É uma celebração e um motivo
para fazermos uma reflexão sobre a nossa língua e o papel que a nossa língua
tem no mundo. O Dia Mundial da Língua Portuguesa, foi proclamado pela Unesco em
2019, mas já antes havia no âmbito da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa, Cplp, o Dia da Língua Portuguesa e das Culturas da Cplp e isso foi
iniciado por volta de 2008. É uma marca e uma oportunidade de criar aqui um
espaço para nós pensarmos qual é a nossa estratégia em relação à nossa própria
língua, de que forma ela é relevante no mundo e quais são os novos caminhos que
devemos trilhar, a partir da língua e da promoção da nossa cultura
contemporânea no mundo inteiro.
E, por isso, é naturalmente uma data muito importante, não
só para os 10 milhões de portugueses, mas para cerca de 260 milhões de
pessoas que são falantes da língua portuguesa, sejam eles nos países da
Cplp, sejam eles nas diásporas destes vários países por todo o mundo, sejam
eles pessoas que falam português ou que querem aprender português, que estão a
aprender português devido a questões profissionais, negócios, artísticas ou até
mesmo questões afetivas, uma paixão pelo português ou por alguma coisa que os
aproximou a nossa própria língua.
ON – Que trabalho desenvolve o Instituto Camões e quantos
são pelo mundo?
FP - Temos cerca de 83 centros de língua portuguesa em todo
o mundo. São instituições que estão dentro das universidades, algumas das mais
prestigiadas do mundo, por todos os continentes.
Temos protocolos de docência, ou seja, acordos com essas
universidades, que neste momento se estimam em cerca de 325 destes protocolos,
que permitem que haja professores contratados por essas universidades para
ensinarem o português. E depois temos também, todas as associações e escolas
comunitárias que também oferecem o português, e ainda, e muito importante, as
escolas portuguesas no estrangeiro.
Portanto, é toda esta rede que promove não só o ensino da
língua portuguesa, como a projeção da cultura de matriz portuguesa em todo o
mundo.
Para além do ensino presencial, que nós privilegiamos,
porque a pandemia também nos veio ensinar que é muito importante e que não é
completamente substituível por meios digitais, temos também cursos online,
cursos de autoaprendizagem, que permitem que pessoas dos mais diversos pontos
do mundo possam aprender o português.
É uma rede que mobiliza muita gente, que tenta chegar ao
máximo de escolas e de pessoas e de universidades possível no mundo, e que
necessita permanentemente de ser adaptada às geografias onde há mais interesse
pelo português, que necessita permanentemente de valorização e de formação dos
professores e daqueles que ensinam português, que implica também um esforço
tecnológico constante.
Também é muito importante toda a parte de estímulo à
investigação, porque as línguas são organismos vivos, e como todos os
organismos precisam de ser estudados até mesmo para a sua própria promoção e
para a sua própria evolução e produção científica nestas áreas.
É importante todo o apoio que nós damos em termos de, por
exemplo, de tradução de obras portuguesas, de escritores portugueses no
estrangeiro. Temos uma linha que é uma linha de tradução que é muito ativa e
que, portanto, permite dar algum apoio financeiro a traduções de obras
portuguesas para outras línguas.
As boas notícias são que nós, apesar de todas as limitações
que há e que são normais, porque os recursos são finitos, vamos conseguindo dar
resposta a este interesse e vamos estar muito, muito ativos também a nível das
organizações internacionais. Para lhe dar um exemplo, criámos agora um
leitorado junto da União Africana, a nível da própria oferta, a nível da
formação dos tradutores.
As línguas para serem, de facto, utilizadas nos meios da
diplomacia internacional é essencial que haja boas interpretações e boas
traduções dos textos, para que se possa ser livremente utilizada e em igualdade
de circunstâncias com outras línguas que são, nomeadamente com o inglês, que é
uma língua praticamente franca.
Instituto Camões
Arte no Jardim, exposição no Centro Cultural Português de
Brasília
ON - Que tipo de imagem projeta a língua portuguesa a
nível mundial?
FP - Eu acho que as línguas transformam-nos sempre e
nós somos moldados e transformados por elas. Uma língua, além de ser um
instrumento de comunicação, é um instrumento de projeção de valores e de uma
visão que é muito própria de uma cultura e a língua portuguesa projeta
culturas, não só a cultura portuguesa, mas a cultura do Brasil, dos outros
estados de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, de São Tomé e Príncipe, da
Guiné-Bissau, de Timor-Leste, da própria Cplp, o que nós conseguimos ser em comum,
que tem também a Guiné-Equatorial como Estado-membro.
Portanto, projeta uma certa forma de estar no mundo, tem
agregado a si uma quantidade de características que, mais uma vez, o que é
importante para mim é que nos sejam reconhecidas, muito mais de nós as
disseminarmos como uma espécie de propaganda. Toda esta questão das pontes, da
abertura para o diálogo, da aproximação cultural, são valores intrínsecos na
forma como nós comunicamos e como nós chegamos aos outros.
ON- Como olha para o percurso da íngua portuguesa
enquanto idioma internacional?
FP - Nós vemos o português aqui no Camões - Instituto da
Cooperação e da Língua como uma língua pluricêntrica, pluricontinental,
multicultural e, portanto, com muitos polos de onde é feita uma evolução. E
essa diversidade do português é, em si mesma, a sua riqueza e muitas vezes o
motivo pelo qual ela consegue congregar tanto interesse da parte de públicos
tão variados.
O português é uma língua que é falada não só por nós,
cidadãos dos estados que têm a língua portuguesa como língua oficial, mas
também como língua de herança, portanto, filhos das nossas diásporas, das
nossas comunidades, como também como língua segunda, como língua estrangeira. É
estratégico que o português seja cada vez mais uma língua integrada nos
sistemas de ensino de outros países, como língua opcional, como nós em Portugal
aprendemos o francês ou o espanhol ou o inglês.
E depois termos os meios técnicos, científicos, tecnológicos
e, naturalmente, os recursos humanos que nós devemos valorizar: os nossos
professores, as entidades públicas, as universidades, os escritores, os
cantores e artistas, todos aqueles que promovem internacionalmente o português
e ter esta rede bem construída de privados e públicos que levam a língua até
todas as profissões, todas as áreas de saber e do conhecimento e que de facto a
projetam no mundo, seja nas organizações internacionais, seja no espaço
digital, seja agregando ao ensino da língua portuguesa toda a dimensão de
inteligência artificial que é preciso nós fazermos e pensarmos como vamos fazer
e, portanto, facilitar todas as formas de chegar com o português onde é
possível e onde nós somos queridos.
Este dia também reflete muito o interesse que há na língua
portuguesa, ou seja, o interesse que os outros veem em nós, na nossa língua.
Muito mais do que se nós dizemos que temos uma língua muito rica, muito
diversa, uma língua promotora da paz, do desenvolvimento, da criação de espaços
de intercompreensão, de tolerância, muito mais importante do que isso é o facto
de outros nos verem dessa forma, outros identificarem na nossa língua essas
características, porque é isso que os aproxima naturalmente dela.
Camões, I.P.
O Instituto Camões promove há décadas o português pelo mundo
ON – Como é que o Camões olha e contribui para uma
eventual campanha de tornar o português língua oficial das Nações Unidas?
FP – Essa é uma pretensão assumida desde logo pelo governo
português e é também uma pretensão que tem sido muito trabalhada no âmbito da
Cpl e com outros parceiros. Nós temos aqui uma cooperação que pretendemos
sempre reforçar com o Instituto Internacional de Língua Portuguesa, que está
sediado em Cabo Verde e que pertence a este universo da Cplp, também com
congéneres, por exemplo, no Brasil, com o Instituto Guimarães Rosa. Portanto
este é um trabalho conjunto de todos aqueles que têm, cuja pátria ou mátria é a
língua portuguesa. É um objetivo comum.
O que nós procuraremos fazer sempre é uma avaliação de todas
as condições políticas, diplomáticas, económicas, financeiras, logísticas, que
tornem possível nós chegarmos a esse objetivo, que eu estou convencida que um
dia chegaremos.
Mas também é preciso dizer que a língua portuguesa já é a
língua de trabalho e língua oficial de múltiplas organizações internacionais,
sejam elas no âmbito das Nações Unidas, várias organizações e programas que têm
o português como língua oficial, mas também não na União Europeia, portanto
organizações que não estão nas Nações Unidas, mas que existem, ou outras
organizações regionais como a UA, a União Africana, ou como o Mercosul, ou como
a Cedeao, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, o Sadc, a
Comunidade de Desenvolvimento da África Austral.
E, portanto, este é um caminho que nós estamos muito
empenhados, como não poderia deixar de ser, mas que é um caminho que só será
possível naturalmente porque a nossa língua representa hoje em dia já 260
milhões de falantes em todo o mundo e tem um potencial de crescimento enorme.
Segundo as projeções demográficas das Nações Unidas, estamos
a apontar para um potencial de 500 milhões até o final deste século, o que é
realmente uma duplicação praticamente do número hoje em dia de falantes.
Mas é também importante quando falamos em projeções
demográficas e em aspetos quantitativos, dizer que nós também estamos
preocupados naturalmente com a qualidade do português.
Queremos aqui ensinar todos os dias um português que permita
às pessoas, não só expressarem-se no básico, mas poderem ler livros, poderem
escrever poesia ou apresentar peças de teatro ou escrever, que é muito
importante também, as suas teses científicas em língua portuguesa. Ou seja, que
seja de facto um português que dê recursos para as pessoas fazerem todas as
suas atividades, das mais técnicas e específicas que existirem em língua
portuguesa e não é reconhecimento convivial da nossa língua.
ON – Como é que a língua portuguesa se tem adaptado às
novas plataformas de inteligência artificial e como se pode proteger a sua
essência?
FP – Qualquer revolução civilizacional, e parece-me que
estamos praticamente a falar a esse nível, não pode nem deve nunca esquecer as
pessoas e o papel que elas têm. Não vejo como é que a inteligência artificial
vai substituir o ser humano. Eu acho que é preciso nós construirmos e
retirarmos da tecnologia aquilo que nos pode ajudar, minimizando os efeitos
potencialmente menos positivos que ela possa ter sobre a nossa sociedade.
Para isso é preciso informação, é preciso as pessoas estarem
muito informadas e nós sabemos exatamente o que é que queremos, que produto
vamos colocar lá, a informação que nós vamos colocar nos sistemas, os dados que
vamos introduzir para que depois o resultado seja o resultado que nós queremos,
editado por nós, pelas nossas próprias éticas, pelos nossos valores e não o
resultado de escolhas feitas por outros.
É muito importante, creio eu, nós sabermos exatamente,
conhecermos e queremos que quem estude a nossa língua desse ponto de vista - da
adaptação a meios tecnológicos do hoje e do futuro - para sermos nós os atores,
para sermos nós os protagonistas desta revolução e não ficarmos reduzidos ao
papel de utilizadores. Nós não podemos ser só usuários desta tecnologia, temos
que ser de facto e criar as condições para ter gente que seja realmente
protagonista nesta revolução.
*Sara de Melo Rocha é correspondente da ONU News em
Lisboa.