domingo, 3 de maio de 2015

LEITURA "AS LÍNGUAS QUE NÃO APRENDI"

"As línguas que não aprendi" (trecho)
Do livro: Como Aprendi o Português e Outras Aventuras, de Paulo Rónai (*)

São duas mil, três mil ou mais? De qualquer maneira o seu número é exatamente igual ao das que nunca hei de aprender. Confissão triste e humilhante para quem desde menino sente pelos idiomas uma espécie de paixão e que, ainda hoje, cada vez que na rua ouve pessoas falarem uma língua desconhecida, tem estremecimentos de inveja.

Quando, pela primeira vez em minha vida, vi uma cédula graúda - podia ter meus sete anos - provavelmente experimentei o desejo de possuí-la, como qualquer um. Se o tive, esqueci-o. Mas lembro-me nitidamente da inquieta curiosidade com que me pus a decifrar as duas palavras - CEM COROAS - que aquela nota ostentava nas oito línguas da desde então finada Monarquia austro-húngara.

Adolescente, alimentei em segredo a esperança de assenhorear- me, com o tempo, do maior número possível de idiomas: vinte, trinta, talvez ainda mais. Um de meus professores assegurava-me que só os quinze primeiros eram difíceis. E nos meus passeios pelos sebos da Europa, ia apanhando cada livro esquisito para dele fazer uso depois, em lazeres que não poderiam deixar de vir: uma gramática ladina ou reto-romana com a chave da pronúncia; o malgaxe em vinte lições; um livro de leitura para o segundo ano primário das escolas de La Valetta, Malta, sem uma única vogal no título; um manual da língua sueca para italianos... verdadeiro bazar de alfarrábios disparatados que os livreiros viam envelhecer na última prateleira e me empurravam quase de graça.

Mas o tempo passou, os lazeres não vieram, a minha biblioteca dispersou-se definitivamente no assédio a Budapeste e todos aqueles idiomas continuam intactos, não revelados, a troçar de mim. Outro terá aprendido, em meu lugar, o malgaxe em vinte lições. E limito-me a sonhar com as oportunidades maravilhosas que perdi.

Num livro islandês teria talvez encontrado resposta às minhas dúvidas; o poeta que melhor exprimiu as minhas angústias, talvez o tivesse feito em haicais japoneses. Mas não nos encontraremos nunca, como se eles não existissem ou eu mesmo não existisse.

O que mais me atormenta são as línguas que principiei a estudar e depois abandonei por falta de tempo, de entusiasmo, de perseverança.

Não me consolo de não haver aprendido o hebraico, que me ensinaram durante alguns anos. Ler os profetas, o Cântico dos Cânticos no original! Mas os meus professores não tinham a menor perícia pedagógica: cortavam o texto em pedacinhos de quatro ou cinco palavras e ditavam a correspondente tradução, literal, estúpida. A gente decorava aquilo e depois recitava-o, soletrando penosamente o original - e era o bastante para inspirar à criança uma aversão insuperável por aqueles caracteres hieráticos, que de início a atraíam tanto.

Outra língua que perdi, já adulto, foi o finês. Em virtude de um pálido, longínquo parentesco com o magiar, os candidatos a professor de húngaro tinham de estudá-lo. Eu era um deles. A gramática finesa ensinou-me muita coisa: por exemplo, que a minha língua materna tinha declinações com mais de uma dúzia de casos e que, até então, usava às mil maravilhas sem suspeitar-lhes a existência. Invejei os finlandeses por possuírem um verbo de negação que permite negar de um modo vago, sem especificação do que se nega - verbo ótimo para senhoras; e lamentei-os por faltarem na sua língua exatamente a letra f e o som correspondente. Nada disso, porém, interessava ao meu examinador; ele só queria saber de mim o desenvolvimento das labiodentais no finês, estoniano, vogul, ostíaco e zurieno. Passei no exame, mas nunca mais pus os pés na aula desse famoso linguista, que em apenas cinquenta anos de ensino conseguiu tirar a um país inteiro a vontade de conhecer outro. 





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