QUE FUTURO PARA A LÍNGUA PORTUGUESA?
Nas últimas semanas, diferentes matérias jornalísticas
e postagens nas redes sociais circularam com o mesmo assunto: a ideia de que,
no futuro, não mais haveria a língua portuguesa no Brasil, mas a língua brasileira.
Esse fato aconteceria porque, segundo seus defensores, dada a incontornável e
acelerada mudança nas duas variedades da língua portuguesa, a daqui e a de
Portugal, seria apenas uma questão de tempo até que o idioma falado aqui e lá
se afastasse de tal modo que não fosse mais possível defini-los como sendo a
mesma língua. Ganhou destaque nesse contexto o livro publicado pelo linguista
português Fernando Venâncio, que deu entrevistas para grandes redes
jornalísticas e televisivas, como a BBC, em que era possível ver chamadas com
tom sensacionalista dizendo algo como “em algumas décadas, idioma falado no
Brasil se chamará brasileiro”. Bem, mas podemos nos fazer a pergunta: isso
seria verdade? Se sim, como aconteceria?
É fato que as línguas mudam e que não permanecem as
mesmas para sempre. Essa mudança acontece não apenas no tempo – a chamada
variação diacrônica –, mas em várias outras instâncias, como na relação de
gênero (masculino x feminino), de idade, de territorialidade, de grau de
formalidade e outras. Essas mudanças, imprevisíveis e incontroláveis, são parte
do que explica que nossa língua portuguesa “não seja mais a língua” de Camões
ou de Machado de Assis, por exemplo, que “não seja a mesma” falada no Rio Grande
do Sul e no Acre e que “não seja a mesma” falada aqui e em Portugal. Nesses
casos, e em muitos outros, há mudanças que atingem todos os níveis da língua e
da comunicação (fonético/fonológico, morfológico, sintático, semântico,
lexical, pragmático...), o que não deixa de ser uma forma de dizer como nosso
país é complexo e plural, e como a língua portuguesa no mundo assume contornos
próprios. Só que, ao mesmo tempo, a nossa língua é a “mesma” de Camões e de
Machado de Assis, é a “mesma” do Norte ao Sul do país, é a “mesma” para
crianças e idosos, é a mesma aqui, na Europa ou na África. Falamos todos a
mesma língua portuguesa em todos esses contextos. Mas como?
Assim, como as línguas mudam a todo tempo, isso
significa dizer que elas funcionam, na prática, como um processo; não são um
objeto, mas um processo. Desse modo, a todo tempo, elas se metamorfoseiam e se
transformam, sendo vistas como uma continuidade, ainda que sejam diferentes ao
longo do tempo e das situações. Do mesmo modo acontece conosco: ao longo da
vida, vamos mudando, crescendo, adotando novos visuais, engordando,
emagrecendo, envelhecendo... vamos, enfim, mudando. A partir desse exemplo,
fica mais fácil entender o paradoxo de uma língua ser e não ser a mesma, do
mesmo modo que nós somos e não somos os mesmos.
Esse é um paradoxo para as línguas em geral: como elas
podem ser e não ser, ao mesmo tempo, a(s) mesma(s) língua(s)? Como é possível
dizer que o João, jovem carioca de 18 anos, fala e não fala a mesma língua de
Camões, fala e não fala a mesma língua que um angolano? Parece certa maluquice,
não é? Esse é o tipo de maluquice com que linguistas lidam o tempo todo (talvez
por isso alguns sejam realmente meio doidos...), mas que só parece uma
maluquice num primeiro momento. Quando estudamos teoricamente a língua,
passamos a lidar com naturalidade com esse paradoxo.
Dito isso, podemos dizer que a língua do Brasil é a
mesma língua de Portugal, ainda que ela seja diferente da língua de Portugal (e
das de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e de vários outros países e
territórios): passamos por influências, fatos históricos e contatos com outras
línguas que são diferentes daqueles por que passou Portugal. E assim estamos há
alguns séculos, sem que disso tivesse resultado falarmos a língua brasileira
(como alguns linguistas já defenderam ou defendem). Dizer, portanto, que em algumas
décadas no Brasil falaremos o brasileiro é, no mínimo, temerário. Mário de
Andrade, há um século atrás, já falava sobre a língua brasileira e, passadas
muitas décadas, isso ainda não se concretizou. O exemplo, caricato, serve para
uma analogia.
O fato é que qualquer pessoa – façam o teste com uma
criancinha que viaja, alguém que ainda não entende nada sobre línguas, nações,
política e etc – sabe que no Brasil e em Portugal se fala a mesma língua, ainda
que com algumas diferenças, mas que o mesmo não acontece na Argentina, por
exemplo, ou na Galiza. Há aproximações, sem dúvidas, mas aí não há a mesma
língua. De igual modo, aqui em nosso país, qualquer pessoa sabe que um
curitibano fala a mesma língua de um paraense, ainda que haja diferenças entre as
“línguas”. Particularidades de uma certa variedade linguística não fazem
imediatamente com que ela se transforme em outra língua. O caminho é muitíssimo
mais longo, complexo, imotivado e incerto.
Bem, o fato é que não há, ainda hoje, indícios o
suficiente que mostrem que temos duas línguas, uma brasileira e outra
portuguesa, nem mesmo que haja algum horizonte próximo para isso. Há
tentativas, militâncias ou desejos particulares, mas dados empíricos e
pesquisas objetivas, isentas de vícios, direcionamento prévios e
contorcionismos intelectuais, não há. Pode ser que um dia isso se concretize e
que haja uma língua brasileira, mas o caminho não vai passar pelo desejo
motivado, pelas frases de efeito ou pela linguística do sensacionalismo. Por
enquanto, nada mudou.
Prof. Dr. JEFFERSON EVARISTO