sexta-feira, 22 de novembro de 2024

QUE FUTURO PARA A LÍNGUA PORTUGUESA?

 



QUE FUTURO PARA A LÍNGUA PORTUGUESA?


Nas últimas semanas, diferentes matérias jornalísticas e postagens nas redes sociais circularam com o mesmo assunto: a ideia de que, no futuro, não mais haveria a língua portuguesa no Brasil, mas a língua brasileira. Esse fato aconteceria porque, segundo seus defensores, dada a incontornável e acelerada mudança nas duas variedades da língua portuguesa, a daqui e a de Portugal, seria apenas uma questão de tempo até que o idioma falado aqui e lá se afastasse de tal modo que não fosse mais possível defini-los como sendo a mesma língua. Ganhou destaque nesse contexto o livro publicado pelo linguista português Fernando Venâncio, que deu entrevistas para grandes redes jornalísticas e televisivas, como a BBC, em que era possível ver chamadas com tom sensacionalista dizendo algo como “em algumas décadas, idioma falado no Brasil se chamará brasileiro”. Bem, mas podemos nos fazer a pergunta: isso seria verdade? Se sim, como aconteceria?

 

É fato que as línguas mudam e que não permanecem as mesmas para sempre. Essa mudança acontece não apenas no tempo – a chamada variação diacrônica –, mas em várias outras instâncias, como na relação de gênero (masculino x feminino), de idade, de territorialidade, de grau de formalidade e outras. Essas mudanças, imprevisíveis e incontroláveis, são parte do que explica que nossa língua portuguesa “não seja mais a língua” de Camões ou de Machado de Assis, por exemplo, que “não seja a mesma” falada no Rio Grande do Sul e no Acre e que “não seja a mesma” falada aqui e em Portugal. Nesses casos, e em muitos outros, há mudanças que atingem todos os níveis da língua e da comunicação (fonético/fonológico, morfológico, sintático, semântico, lexical, pragmático...), o que não deixa de ser uma forma de dizer como nosso país é complexo e plural, e como a língua portuguesa no mundo assume contornos próprios. Só que, ao mesmo tempo, a nossa língua é a “mesma” de Camões e de Machado de Assis, é a “mesma” do Norte ao Sul do país, é a “mesma” para crianças e idosos, é a mesma aqui, na Europa ou na África. Falamos todos a mesma língua portuguesa em todos esses contextos. Mas como?

 

Assim, como as línguas mudam a todo tempo, isso significa dizer que elas funcionam, na prática, como um processo; não são um objeto, mas um processo. Desse modo, a todo tempo, elas se metamorfoseiam e se transformam, sendo vistas como uma continuidade, ainda que sejam diferentes ao longo do tempo e das situações. Do mesmo modo acontece conosco: ao longo da vida, vamos mudando, crescendo, adotando novos visuais, engordando, emagrecendo, envelhecendo... vamos, enfim, mudando. A partir desse exemplo, fica mais fácil entender o paradoxo de uma língua ser e não ser a mesma, do mesmo modo que nós somos e não somos os mesmos.

 

Esse é um paradoxo para as línguas em geral: como elas podem ser e não ser, ao mesmo tempo, a(s) mesma(s) língua(s)? Como é possível dizer que o João, jovem carioca de 18 anos, fala e não fala a mesma língua de Camões, fala e não fala a mesma língua que um angolano? Parece certa maluquice, não é? Esse é o tipo de maluquice com que linguistas lidam o tempo todo (talvez por isso alguns sejam realmente meio doidos...), mas que só parece uma maluquice num primeiro momento. Quando estudamos teoricamente a língua, passamos a lidar com naturalidade com esse paradoxo.

 

Dito isso, podemos dizer que a língua do Brasil é a mesma língua de Portugal, ainda que ela seja diferente da língua de Portugal (e das de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e de vários outros países e territórios): passamos por influências, fatos históricos e contatos com outras línguas que são diferentes daqueles por que passou Portugal. E assim estamos há alguns séculos, sem que disso tivesse resultado falarmos a língua brasileira (como alguns linguistas já defenderam ou defendem). Dizer, portanto, que em algumas décadas no Brasil falaremos o brasileiro é, no mínimo, temerário. Mário de Andrade, há um século atrás, já falava sobre a língua brasileira e, passadas muitas décadas, isso ainda não se concretizou. O exemplo, caricato, serve para uma analogia.

 

O fato é que qualquer pessoa – façam o teste com uma criancinha que viaja, alguém que ainda não entende nada sobre línguas, nações, política e etc – sabe que no Brasil e em Portugal se fala a mesma língua, ainda que com algumas diferenças, mas que o mesmo não acontece na Argentina, por exemplo, ou na Galiza. Há aproximações, sem dúvidas, mas aí não há a mesma língua. De igual modo, aqui em nosso país, qualquer pessoa sabe que um curitibano fala a mesma língua de um paraense, ainda que haja diferenças entre as “línguas”. Particularidades de uma certa variedade linguística não fazem imediatamente com que ela se transforme em outra língua. O caminho é muitíssimo mais longo, complexo, imotivado e incerto.

 

Bem, o fato é que não há, ainda hoje, indícios o suficiente que mostrem que temos duas línguas, uma brasileira e outra portuguesa, nem mesmo que haja algum horizonte próximo para isso. Há tentativas, militâncias ou desejos particulares, mas dados empíricos e pesquisas objetivas, isentas de vícios, direcionamento prévios e contorcionismos intelectuais, não há. Pode ser que um dia isso se concretize e que haja uma língua brasileira, mas o caminho não vai passar pelo desejo motivado, pelas frases de efeito ou pela linguística do sensacionalismo. Por enquanto, nada mudou.

 

Prof. Dr. JEFFERSON EVARISTO

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