Após 35 anos da morte de Cora Coralina, obra ainda
encanta
A poeta e contista ganhou notoriedade nacional já com
90 anos de idade
Publicado em 10/04/2020 - 09:45 Por Gilberto
Costa - Repórter da Agência Brasil - Brasília
Esta Sexta-Feira da Paixão, 10 de abril, marca
a passagem dos 35 anos de morte de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, mais
conhecida pelo pseudônimo de Cora Coralina.
A poeta e contista ganhou notoriedade nacional
em 27 de dezembro de 1980, já com 90 anos de idade, após ser resenhada por
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) em sua coluna publicada em um sábado no
Jornal do Brasil. “Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás.
Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e
influentes do estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua
poesia, de sua invenção e identificada com a vida como é, por exemplo, uma
estrada.”
A partir de então, o noticiário destacava o
fato de uma mulher, idosa, do interior do Brasil, e com pouca escolaridade -
estudou até a quarta série do antigo primário - romper a cena literária e
começar a publicar a partir dos 75 anos. Não foram, no entanto, as condições
socialmente marcadas que fizeram Cora Coralina merecer a atenção de Drummond e,
antes do poeta, um encontro com Jorge Amado.
“Cora Coralina tem versos fortes, densos e
essenciais. Isso a fez universal. Mulher que dialogou com seu tempo
estilístico, abrangendo vários tempos semânticos. Sua vinculação com a terra, o
ar, a água, as coisas mais essenciais do humano, fez de sua poesia algo
reconhecível para todos”, avaliza Cleomar Rocha, professor da Faculdade de
Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (UFG) e coordenador do MediaLab,
dedicado à pesquisa, desenvolvimento e inovação em mídias interativas, que
participou do processo de modernização do Museu Casa de Cora Coralina, que
funciona na antiga casa da poeta na cidade de Goiás, ou Goiás Velho, a 130
quilômetro (km) de Goiânia.
Inteligência
madura e simples
Rocha considera que a visão de mundo da poeta
e contista “apontava para uma inteligência madura, simples e densa. E essa
densidade e simplicidade que conduziram a poetisa a um contexto de relevância
nacional, em franco diálogo com outros nomes importantes da literatura, como
Carlos Drummond de Andrade e Jorge Amado”. Para ele, o maior legado deixado por
Cora Coralina foi “ver e fazer ver a poesia das coisas simples”.
O despojamento da escritora também comove a
jornalista Elza Pires. “Cora Coralina é para mim uma daquelas leituras
recorrentes que vou e volto ao longo do tempo e dependendo dos momentos. Ela
reaviva a memória, fala das coisas simples e tem um otimismo vivo que perpassa
seus contos e poemas.”
Casa de Cora Coralina às margens do Rio
Vermelho - Marcello Casal jr/Agência Brasil
A jornalista conheceu Cora Coralina. “Lembro
dela sentada em uma cadeira com uma bengala ao lado. A porta de entrada da sua
casa, com aquele corredor comprido bem na entrada, estava sempre aberta para
quem quisesse. Foi assim que a vi pela primeira vez em uma das minhas férias
escolares. Minha avó materna tinha uma casa perto da casa velha da ponte. Era
curioso ver aquela senhora que falava mais em verso do que em prosa e nos
divertia com seus longos textos, dela mesma e de outros poetas, todos
decorados. Ela nos incentivava a memorizar poemas, lembrando trechos inteiros
de Neruda a Goncalves Dias”.
A recordação de Elza Pires assinala que apesar
de uma produção que retrata a vida em uma pequena cidade do interior, a
criatividade e o estilo de Cora Coralina não foram forjados no confinamento das
montanhas de Goiás.
A análise da obra atesta influência das
vanguardas literárias, como aponta Goiandira de Fátima Camargo, da Faculdade de
Letras da UFG. “Sua poesia e prosa só são possíveis com as conquistas do
Modernismo brasileiro”. Em sua opinião, “a importância de sua poesia para a
literatura nacional, assim como Manuel Bandeira, foi ter feito da vida, suas
alegrias e reveses, matéria de poesia, sem torná-las pessoais. Pelo contrário,
alcançou uma identificação com o leitor, que reconhece nos seus poemas uma vida
simples, humilde e de luta.”
Segundo a professora, embora Cora Coralina
“não tenha tido uma formação educacional completa e nem tenha frequentado o
meio intelectual, ela era atenta à literatura, ao conhecimento livresco”.
Livros lidos pela escritora estão guardados em seu museu. O que Cora Coralina
não aprendeu com eles, “a vida lhe ensinou. E é isso que encanta os seus
leitores: a experiência de vida ser tão plena na sua poesia mais do que a
sofisticação dos versos mais eruditos”, sublinha Goiandira Camargo.
Voz
feminina
Casa de Cora Coralina foi transformada em
museu - Marcello Casal jr/Agência Brasil
De acordo com a acadêmica, Poemas dos becos de
Goiás e estórias mais (1965), Meu livro de cordel (1976), Vintém de cobre.
Meias confissões de Aninha (1983) e Estórias da Casa Velha da Ponte (1985)
guardam o “melhor legado” de Cora Coralina para a literatura brasileira.
“Nunca um escritor ou poeta nacional se
aproveitou tanto da memória, dos acontecimentos pessoais para transformá-los em
experiência poética que, a partir da leitura de cada leitor, se universaliza,
se torna de todos nós”, considera Goiandira Camargo. “Seus poemas transitam
entre a poesia e a prosa, sua prosa mais memorialística do que ficcional, é uma
sensível crônica dos costumes, das histórias do povo brasileiro de Goiás”,
classifica.
Para ela, Cora Coralina é “uma da vozes
femininas mais expressivas e fortes da literatura” e manteve sua visão de mundo
“voltada para os menos favorecidos. As figuras de sua poesia e narrativa são
pessoas simples, do povo, a mulher da vida, o menor abandonado, a
cozinheira...”
Da janela da Casa de Cora Coralina, visitantes
veem o Rio Vermelho que corta a cidade de Goiás
- Marcello Casal jr/Agência Brasil
- Marcello Casal jr/Agência Brasil
A mesma inclinação da escritora observa Elza
Pires ao ler Confissões de Aninha, onde em um conto curto conta a estória de
uma menina, Jesuína, que é castigada por ter quebrado uma louça bonita da
madrinha. Por isso obrigada a trazer no pescoço o colar com os cacos da tigela.
“Cora relata que esse era um castigo comum imposto às crianças”.
A jornalista sente falta de “estudos mais
aprofundados” sobre a obra de Cora Coralina, especialmente os contos. A
professora Goiandira Camargo avalia que passados 35 anos da morte da escritora,
“a crítica canônica do eixo Rio-São Paulo ainda não se interessou por ela.
Houve uma certa dificuldade pelo fato de ser mulher no meio intelectual
predominantemente masculino”.
A indiferença não era estranha à Cora Coralina
que um dia traçou em Meu livro de cordel: Nasci para escrever, mas o meio,/ o
tempo, as criaturas e fatores/ outros, contramarcaram minha vida.
Fonte: Agência Brasil
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