terça-feira, 29 de abril de 2025

A tempestuosa identidade (latino-)americana no Brasil

 

A tempestuosa identidade (latino-)americana no Brasil

Pindorama, dizem, vive de costas para seu continente. Em novo livro, Bernardo Ricupero debruça-se sobre as interpretações que politizam – entre apropriações e conflitos de ideias – a inserção brasileira entre os hermanos

Imagem: -J. Hondius (1607)

Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título “E depois de A tempestade?” Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

CALIBAN: You taught me language, and my profit on’t
Is, I know how tu curse.
William Shakespeare, The Tempest, 1611

Vou aprender a ler
Pra ensinar meus camaradas
‘Prender a ler
Joao Roberto Caribe Mendes / Capinan, Yáyá Massemba, 2003


É recorrente a ideia de que Brasil e América Hispânica estão de costas um para o outro na história intelectual. A variação mais contundente da mesma afirmação mobiliza inclusive a expressão América Latina como se ela fosse sinônimo ou prerrogativa das antigas colônias espanholas, nossas vizinhas. Quantos acadêmicos brasileiros se descobriram latino-americanos em departamentos universitários norte-americanos, ao menos quando eles pareciam locais atraentes para se ir? Outros, por razões biográficas acidentais e ideológicas, cultivaram interesse e conhecimento ímpares sobre o Brasil na América Latina. O assunto volta à tona como problema sociológico e político em vários momentos importantes, como foi o caso da questão do desenvolvimento nos anos 1950 e 1960, que gerou, inclusive, teorias relativamente originais no quadro mais amplo do debate sobre a modernização. O que sugere, portanto, que mais do que exatamente um desconhecimento mútuo, essa história parece, antes, talvez, a reiteração de uma ideia de desconhecimento mútuo como um autocultivo. Uma espécie, ela também, de impressão de recomeço do zero a cada nova geração, no Brasil?

São problemas muito difíceis e para os quais não há respostas unívocas. Mesmo porque relações culturais – ponhamos assim em termos bem gerais – não são estáveis, não se desenvolvem cumulativamente num sentido unívoco e de aperfeiçoamento das partes interlocutoras. E, claro, não estão acima dos conflitos sociais, políticos, econômicos e mesmo linguísticos. O Brasil, esse subcontinente falante da última flor do Lácio, cercado por todos os lados de uma das línguas mais faladas mundialmente, o espanhol. A propósito, uma das expressões mais dinâmicas nas relações entre o Brasil e seus vizinhos mais próximos é a espécie de língua livre, o “portunhol”, cada vez usada com menos constrangimento em nossas interações.

O que pensaria disso um Manuel Bandeira, por exemplo, que, além de poeta, foi tradutor e professor de literatura hispano-americana na Universidade do Brasil, de 1943 a 1956? Bandeira, aliás, já atuava desde os anos 1930 como mediador com “los hermanos” na vida cultural do Rio de Janeiro, então capital federal do Brasil. É conhecida sua amizade com Alfonso Reyes, escritor e embaixador do México no Brasil de 1930 a 1936. Mas, sem querer jogar lenha na fogueira, o papel desempenhado por Bandeira junto aos escritores hispano-americanos não teve reciprocidade equivalente. Depois, já no período da Segunda Guerra e do domínio de Pablo Neruda, os escritores hispânicos passariam a ser recebidos por Aníbal Machado, na Visconde de Pirajá, em Ipanema. Bandeira, sempre presente, mas mais discreto, pois não faz poesia política. De Reyes, ele deixou a lembrança no célebre poema “Rondó dos Cavalinhos” (“Alfonso Reyes partindo,/ E tanta gente ficando”).

Bernardo Ricupero é, sem dúvida, o intelectual brasileiro da nossa geração melhor preparado e equipado para lidar com questões das interpretações latino-americanas. Ele acaba de lançar sua tese de livre-docência, defendida em 2021 no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, em livro: Entre Ariel, Caliban e Próspero: dilemas da identidade (latino) americana pensados a partir do Brasil. E o que estão fazendo as personagens da última peça de William Shakespeare, A Tempestade, encenada em 1611, aqui ao Sul do Novo Mundo? Como mostra Ricupero, há bons indícios da associação da ilha deserta da peça à América, especialmente um naufrágio em Bermudas de um navio da Companhia da Virgínia, a cujos investidores o bardo inglês estava ligado por interesses. Para não lembrar do ensaio seminal “Dos canibais”, de Michel Montaigne, que sugere que Caliban seria um nativo americano (Caliban seria um anagrama da palavra espanhola canibal, usada para se referir aos grupos indígenas Caraíbas). Para além disso, porém, A Tempestade acabou se convertendo numa alegoria para pensar a América, e muito especialmente o confronto entre a América que foi se tornando “latina” com uma outra América, a “saxã”.

É essa história fascinante da viagem das ideias, suas circulações e ressignificações, que o livro publicado neste início de 2025 pela editora Alameda nos conta. Um livro erudito, original, bem documentado e bem escrito. Um desses casos, infelizmente não muito comuns, de um grande tema contando num grande livro. Atento ao preceito de que a recepção das ideias revela mais sobre os receptores e seus contextos diferentes do que os supostamente originais, Ricupero reconstitui um século de apropriações e conflitos interpretativos que, como também argumenta consistentemente, estariam na base de uma politização da identidade latino-americana. Antes de eu entrar mais no livro – e sairmos molhados dessa travessia com tempestades –, porém, deixe-me explicar o porquê de minha afirmação anterior sobre Bernardo ser tarimbado como poucos para nos guiar nessa aventura intelectual.

Bernardo Ricupero dedicou toda a sua formação acadêmica – aliás toda ela realizada com base no Departamento de Ciência Política da USP, onde leciona – à América Latina. Sua dissertação de mestrado estuda a “nacionalização” do marxismo no Brasil em Caio Prado Júnior, sem perder de vista o processo, digamos, funcionalmente equivalente no Peru, como José Carlos Mariátegui. A dissertação foi publicada em 2000 com o título de Caio Prado Jr. e a nacionalização do marxismo no Brasil.

Sua tese de doutorado, também orientada por Gildo Marçal Brandão (uma das pessoas a quem o livro é dedicado), toma mais diretamente a comparação como um problema teórico-metodológico, e coloca em escrutínio contrapontístico o romantismo no Brasil tendo em vista a Argentina. Publicado como livro em 2004, O romantismo e a ideia de nação no Brasil (1830-1870) mostra como independência literária, historiografia nacional, mestiçagem e silêncio cauteloso sobre a escravidão são alguns dos elementos assentados pelo romantismo brasileiro na construção social da ideia de nação. É importante ler José de Alencar em contraponto a autores como Echeverría, Sarmiento, Alberdi, condutores da ideia de nação na Argentina.

Esse background, que também se multiplica em disciplinas e orientações acadêmicas sobre a América Latina nas duas últimas décadas, adensa o debate do marxismo acadêmico uspiano, ao qual Bernardo Ricupero também se filia. No conjunto, seus trabalhos sugerem que, para que se possa apreender os efeitos políticos mútuos entre processos ideológicos e estruturas de poder, não devemos nos deter na constatação da importação de instituições e ideias que marcam as sociedades de matriz colonial. Mas, partindo desse mesmo mecanismo social, propõe a partir de Roberto Schwarz, sobretudo, qualificar as relações dialéticas, ainda que negativas, entre importação e apropriação social, que podem singularizá-las. Assim, a perspectiva comparativa entre sociedades de matriz colonial impõe-se como recurso metodológico na definição do sentido político assumido pelas ideias e pelas instituições em cada sociedade. Impasses de ordem marco-sociológica e econômica ocupam os lugares da dualidade nessa perspectiva que Bernardo vem contribuindo para renovar.

Como se vê, estamos em mãos hábeis para a navegação por mares turbulentos – do século XVII de Shakespeare à longa passagem do XIX ao XX, dos meados dos anos 1950 até os anos 1980 do século passado, temporalidade coberta no livro de que ora nos ocupamos. É muito impressionante a quantidade e a diversidade de matéria textual levantada e analisada na pesquisa ao longo dos anos. Quantas leituras e releituras a subsidiam? Quantos escritores usaram personagens retirados do trabalho do dramaturgo inglês como metáforas para entenderem o que seria próprio à América Latina e o que seria comum a toda uma América? Que eu saiba, tendo escrito eu mesmo meu doutorado sobre Ronald de Carvalho, autor de O espelho de Ariel (1922), estão todos lá no livro de Bernardo, ainda que com ênfases e papéis diferentes na economia interna explicativa do livro. José Enrique Rodó, Roberto Fernández Retamar e Richard Morse, que a mobilizaram diretamente, formam não apenas o eixo da análise, mas também suas viradas na longa duração.

Além desses autores, há os que com eles dialogam sem necessariamente trazerem as metáforas shakespearianas tão direta ou centralmente: Eduardo Prado, Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa, Manoel de Oliveira Lima, José Veríssimo, Manoel Bomfim, Oswald de Andrade, José Vasconcellos, Rubén Darío, Paul Groussac, Francisco Garcia Calderón, Pedro Henríquez Ureña, José Vasconcelos, Alfonso Reyes, Emir Rodríguez Monegal e Leopoldo Zea são alguns deles. É um repertório de autores e ideias muito impressionante e que, mesmo nem sempre referidos uns aos outros, permite a Bernardo Ricupero explorar o que chama de uma “certa intertextualidade” entre eles.

Identidade é relação. Politizar identidades é desnaturalizar relações. O foco, nunca perdido no livro, é a história das ideias sobre a identidade latino-americana em relação à norte-americana, especialmente vista do Brasil, ma non troppo. Como disse, é a trinca Rodó-Retamar-Morse que estrutura a massa de material primário e a análise do autor. O uruguaio José Enrique Rodó, quando o século XX se abria e os Estados Unidos emergiam como potência, identificou latinos com o espiritualismo do gênio alado Ariel, contraposto ao materialismo do “escravo selvagem e deformado” Caliban, supostamente mais próximo de anglo-saxões. Após a Revolução Cubana, Roberto Fernández Retamar reivindica a revolta de Caliban contra o senhor da ilha, Próspero, para a América Latina que enfrentava o desafio do imperialismo norte-americano. Já no final do século XX, momento em que a autoestima dos Estados Unidos era crescentemente colocada em questão, o norte-americano Richard Morse defendeu que Próspero, identificado com seu país, olhasse para o espelho de seus vizinhos como forma de lidar com suas dúvidas e incertezas.

Ao invés de pensar esses autores como “momentos decisivos”, ao modo da Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, Ricupero acaba se aproximando do historiador das ideias políticas John G. A. Pocock. Como notou Maria Ligia Prado no excelente prefácio ao livro, Ricupero parece inspirado na ideia de “momento maquiaveliano” para organizar o texto e a análise em três partes: “o momento Ariel (em que a questão central é a cultura)” e José Enrique Rodó constitui o centro do debate; o “momento Caliban (em que a política assume um lugar proeminente)”, com o cubano Roberto Fernández Retamar; e o “momento Próspero (voltado especialmente para pensar a modernidade)”, em que se destaca a heresia de Richard Morse. The Machiavellian Moment (1975) me pareceu uma aproximação, de fato, muito acertada, pois o sentido dado por Pocock à ideia de “momento” envolve a combinação entre tempo e espaço distintos (em que o historiador trata em seu livro: o espaço e o tempo do republicanismo da Florença do Renascimento) e suas reverberações (no caso, nos três séculos seguintes, quando desempenha papel estrutural na constituição do republicanismo inglês e norte-americano), acrescento eu.

Não puxarei mais esse fio, mas aviso leitoras e leitores que o livro é riquíssimo como montagem teórica e metodológica em torno dessa ideia de “momentos”, bem como em termos de estratégia narrativa, que, ademais, permite ao autor simultaneamente pensar e pesar o diacrônico e o sincrônico nas apropriações de A tempestade e, desse modo, discutir o que é comum e o que é diferente na identidade latino-americana face à norte-americana ou estadunidense. E, nela, na diferença, sobretudo, o que há de comum e perene, e o que há de particular em cada momento e também entre os autores, afinal, tão distintos. Na apresentação, Ricupero faz questão de chamar a atenção para o fato de que, no livro, os três momentos acabaram por ter tamanhos muito diferentes, com franca concentração no momento Ariel. Tudo bem, as razões apontadas, inclusive as contingentes, envolvidas na feitura de um livro dessa envergadura, são inteiramente defensáveis; mas, se fosse preciso, eu lembraria a ele que todo desenvolvimento acaba sendo desigual, mas combinado, não é mesmo?

Uma grande conquista do livro, que merece a atenção de todos nós especialistas, diz respeito ao caráter relativamente aberto da análise diacrônica planejada. Num dos enunciados teórico-metodológicos centrais – embora discretamente formulado no livro, como, aliás, é discreta toda a discussão desse nível, já que são os textos forjados em torno de Ariel, Caliban e Próspero que protagonizam o enredo do livro, e não as particularidades e picuinhas acadêmicas –, Bernardo afirma: “A história se manifestaria na ambivalência, sendo também a dimensão a partir da qual o texto se inseriria na história”. Ele ressoa outro historiador das ideias, Reinhart Koselleck, a quem também recorre, neste caso explicitamente, para trabalhar a ideia de “camadas de significação” presentes num conceito e qualificar o que nele se manifesta tanto como permanência quanto como mudança. E mais: “Atrai-me também como o historiador alemão destaca a relação entre história dos conceitos e história social, no sentido de que os conceitos podem tanto funcionar como ‘fatores causais como indicadores de mudança histórica’”.

O comum e o próprio. As permanências e as mudanças. A matéria viva dos livros ressuscitados por Bernardo Ricupero – e uso a expressão não apenas por estar escrevendo esta resenha num feriadão de Páscoa, mas porque ela cabe perfeitamente ao caso, me parece, de tão esquecidos que esses livros estavam, e talvez mesmo desconhecidos das novas gerações de intelectuais brasileiros. A meu ver, parte destes se deixou levar muito unilateralmente pela politização das identidades apenas no plano interno, fazendo o trabalho sem dúvida necessário de revirar os escombros da identidade nacional e mostrar o tanto de violências e apagamentos que foram produzidos para sustentá-la no projeto de construção do Estado-nação que durou quase dois séculos no Brasil. Mas já vivemos tempos de desacoplamento entre essas esferas. É preciso, agora mais do que nunca, correr atrás da compreensão das dinâmicas transnacionais e globais que nos definem, juntam e separam. E, num momento em que os Estados Unidos passam por transformações políticas de ordem carismática e populista tão incrivelmente discrepantes de tudo o que eles escreveram sobre si mesmos e em que muitos acreditaram, ler Entre Ariel, Caliban e Próspero não deixará também, ao que parece, de ser uma forma de nos prepararmos para o futuro bem próximo. Mas e este “entre”, o que será ele?

Petrópolis-RJ, 19 de abril de 2025


sexta-feira, 25 de abril de 2025

SOBRE A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS - 25 DE ABRIL DE 1974

 

Revolução dos Cravos: João Varela Gomes e a escala de Brecht

Sobre o coronel revolucionário protagonista da Revolta de Beja de 1962 e da Revolução dos Cravos em 1974


António Louçã25 abr 2025, 08:53

Foto: Coronel Varela Gomes. (Eduardo Baião/DN)

Via Centenário Varela

Os fracos não lutam. Os fortes lutam talvez durante uma hora. Os que ainda são mais fortes lutam durante vários anos. Mas os mais fortes lutam durante toda a vida. Esses são imprescindíveis.

(Bertolt Brecht)

No lapso de um mês, cumprem-se 50 anos do 25 de Abril e, agora, 100 anos do nascimento de João Varela Gomes. Entre os ecos da primeira comemoração passa, naturalmente, despercebida a segunda. Mas a primeira comemoração tem-se limitado a uma superficial hagiografia dos capitães de Abril e a uma diabolização das forças sociais que quiseram levar mais longe a revolução. Se não quisermos ficar-nos por esse discurso oficial, o centenário de Varela Gomes é uma ocasião imperdível para evocar uma luta iniciada antes do 25 de Abril e prolongada muito para lá do 25 de Novembro.

Nascido em 24 de maio de 1924, João Varela Gomes parecia destinado a uma brilhante carreira militar. Mas em 1948 partiu para uma comissão em Goa e o seu espírito crítico logo chocou com as realidades do colonialismo. Em 1956 foi nomeado para o curso do Estado-Maior, destacou-se no primeiro ano pela sua invulgar capacidade e cultura, mas logo recusou as oportunidades proporcionadas por essa carreira. Estado-Maior era, para ele, sinônimo de “intriga palaciana”.

A vaga delgadista e a Revolta de Beja

O início da campanha eleitoral de Humberto Delgado foi encontrar Varela Gomes como capitão em Santa Margarida, próximo de Tomar. As grandes manifestações de 14 e 16 de maio de 1958, no Porto e em Lisboa, tiveram impacto em todo o país e encorajaram-no a intensificar a agitação entre os seus contatos militares. As manifestações da campanha, e depois, a partir de 8 de junho, a vaga de greves espontâneas contra a fraude eleitoral criaram, como Álvaro Cunhal viria a admitir, “uma situação pré-insurreccional” que o PCP não soube conduzir à vitória.

A frustração das expectativas de 1958 deixava sobre a mesa o dilema de continuar a aproveitar as margens de ação legal cada vez mais estreitas, ou de conspirar com vista a uma saída putschista. Nos três anos seguintes, Varela Gomes participou pacientemente na actividade conspirativa que fervilhava nas Forças Armadas, mas parece tê-lo feito sempre com o intuito de acumular forças que pudessem intervir em condições mais propícias. Não tratou nunca de precipitar uma ação militar e, em discussão com Humberto Delgado, fez mesmo contravapor à atitude urgentista do general.

Nos três anos de ressaca da vaga delgadista de 1958, o impulso mais notório de Varela Gomes foi o de retomar a agitação de massas, aproveitando as mais pequenas brechas que lhe permitissem agir à luz do dia. Esse impulso manifestou-se principalmente no final de 1961. A guerra de libertação tinha começado em Angola e o ambiente político em Portugal era de fortaleza sitiada. A oposição, enfraquecida por uma vaga de prisões, ia concorrer às eleições legislativas com as últimas margens de luta legal a serem drasticamente cerceadas.

Nos últimos meses de 1961, Delgado já se encontrava no exílio e o calendário determinava a realização de mais uma farsa eleitoral para a Assembleia Nacional. Varela Gomes aceitou a candidatura nas listas da oposição, tornando-se rapidamente o grande agitador da campanha e a principal figura pública da oposição. Percorreu cidades e vilas, segundo havia de recordar mais tarde Maria Eugénia, a companheira da sua vida, discursando “às vezes em barracões, em cima de um carro ou de uma camioneta”. A imprensa fascista não se enganou e rapidamente o escolheu, entre os 86 candidatos oposicionistas, como alvo dileto das suas tiradas mais vitriólicas. Mesmo a disciplinada militância do PCP se sentiu atraída pelo estilo enérgico deste pós-delgadismo, mais jovem, desassombrado e radical.

Mas, a pretexto da guerra, o regime cerrava fileiras, silenciava dissidências e matizes, aliciava os republicanos mais nacionalistas. Dez dias antes da votação, a imprensa fascista já dizia despudoradamente que o partido único tinha uma maioria absoluta garantida na Assembleia Nacional. Em 12 de novembro a oposição decidiu boicotar as eleições. Nas semanas seguintes, a escalada repressiva custou a vida ao operário comunista Cândido Capilé, abatido durante uma manifestação, e ao funcionário comunista José Dias Coelho, assassinado pela PIDE em 19 de dezembro.

Quando Manuel Serra chegou a Portugal com ordens de Humberto Delgado para iniciar um movimento revolucionário antes do fim desse ano, Varela Gomes tratou de dissuadi-lo de um plano que considerava irrealista. Ele próprio se encontrava sob cerrada marcação da PIDE e sob uma pressão acrescida da hierarquia do Exército que o intimava a oferecer-se como voluntário para a guerra, se quisesse fazer esquecer o seu papel na campanha eleitoral. Ainda assim, Varela Gomes aceitou discutir com Manuel Serra o plano deste para a tomada do RI 3, em Beja.

Para o efeito, tinha Serra organizado largas dezenas de civis, em grande parte operários da margem sul ou do Bairro da Liberdade, em Lisboa. Mas a preparação deixava a desejar: os insurretos quase não tinham armas e dependiam das que conseguissem no assalto ao quartel. Na sua maioria, mal sabiam manejá-las. Varela Gomes começou por negar-se a uma iniciativa em que via pouco realismo e muita diletância. Na discussão que se foi desenvolvendo, Serra ameaçou a certa altura avançar com os civis, sem a participação de Varela Gomes, sujeitando-os todos ao que poderia ser um derramamento de sangue infrutífero.

Neste impasse, surgiu José Hipólito Santos, do grupo “Seara Nova”, informando Varela Gomes sobre a disponibilidade de oficiais do RI 3 para agirem sob as ordens deste. Mais tarde, Varela Gomes viria sempre a apontar a revelação da disponibilidade de três oficiais da unidade como o “clic” que o decidiu a assumir a direcção operacional da revolta. Mas podemos admitir que a quase-chantagem de Serra tenha calado fundo no seu espírito e o tenha feito procurar um pretexto para arriscar tudo numa iniciativa com escassíssimas possibilidades de êxito, como ele próprio intuíra. Na verdade, o pretexto era frágil e os oficiais recrutados à pressa para o movimento também não estavam plenamente convencidos. Com os três do quartel de Beja e mais três que o acompanharam de Lisboa, teve Varela Gomes intensas discussões, literalmente até ao último minuto, para evitar que desistissem.

O plano consistia em tomar o quartel e aí instalar Humberto Delgado. O general, entrando clandestinamente em Portugal, assumiria as rédeas da revolta com a legitimidade do apoio popular verificado durante a campanha presidencial. De Beja deveriam partir colunas para Lisboa e para o Algarve, procedendo pelo caminho ao “levantamento das populações, chamadas com a ajuda de megafones, a quem seriam distribuídas armas”, segundo José Hipólito dos Santos. Mais do que os comandantes de unidades comprometidos com Varela Gomes, que na hora da verdade podiam cumprir melhor ou pior os seus compromissos, contava-se sobretudo com o povo que três anos antes tinha estado na rua com Humberto Delgado.

Na madrugada de 1 de janeiro de 1962, os militares entraram pela Porta de Armas, de acordo com o plano, mas logo se depararam com a primeira dificuldade, que era a presença na unidade do major Henrique Calapez Martins, legionário irredutível e segundo comandante do regimento. A iniciativa de Varela Gomes, de empreender ele próprio a captura daquele oficial, gorou-se por motivos bem conhecidos: quando tentou dialogar com Calapez para obter a sua rendição, foi recebido a tiro e sofreu dois ferimentos graves. Apesar de uma parte dos civis ter conseguido entrar no quartel, apoderando-se da Casa da Guarda e dominando a sua guarnição, os graves ferimentos sofridos por Varela Gomes decapitaram a revolta e rapidamente inviabilizaram qualquer nova iniciativa dos insurretos. O alarme entretanto estava dado e os insurretos foram na sua quase totalidade capturados numa extensa ofensiva policial. No balanço final, havia dois insurretos mortos, dois feridos e, do lado governamental, o sub-secretário de Estado do Exército atingido mortalmente por “fogo amigo”.

Nos dias seguintes, mesmo sem se poder vislumbrar qualquer reanimação do movimento insurrecional, a ditadura foi incapaz de esconder o seu nervosismo. Os pasquins fascistas mais notórios, como A Voz, alarmaram-se com a composição predominantemente operária do grupo revolucionário e chegaram a sugerir que os seus membros fossem “passados pelas armas”. Mesmo jornais relativamente conspícuos, como O Século e o Diário de Notícias, reclamavam as medidas mais extremas contra a alegada inspiração cubana da revolta. Enfim, a perturbação que atingiu a pirâmide fascista da base até ao topo acabou por traduzir-se no facto de Salazar, afônico, ter precisado de mandar ler ao seu acólito Mário de Figueiredo a comunicação que tinha para apresentar à Assembleia Nacional.

O ano iniciado com a revolta de Beja foi ainda o da primeira grande crise estudantil. Mas depois calaram-se os últimos ecos da vaga delgadista, e, em 1964, a pequena vanguarda que empreendera a Revolta de Beja ia ser julgada num ambiente desfavorável. O julgamento encontrava-se sob uma observação invulgarmente atenta da imprensa internacional e a ditadura encenava uma face paternalista e conciliatória para mostrar ao mundo que podia permitir-se o luxo de uma relativa brandura. Mas a generalidade dos insurretos levados a tribunal não se deixou confundir com cantos de sereia e manteve uma atitude digna.

Varela Gomes adoptou um discurso combativo, inspirando-lhes contenção e firmeza. Ao magistrado que, sugerindo-lhe uma declaração de arrependimento, lhe perguntava se voltaria a pegar em armas contra o regime, respondeu ele, apontando os pides que enchiam a assistência, que isso seria, “naquelas circunstâncias”, impossível. No discurso final, afirmou que aquele banco dos réus sempre cheio de gente era o refúgio da honra num país que resistia. Acrescentou depois: “Levei até à última fronteira da legalidade o meu protesto, pouco me tendo surpreendido ver confirmada a inutilidade de uma oposição leal, a peito descoberto. Nunca um governo desta espécie policial e predatória abandonou o poder a não ser expulso pela força”. E concluiu, lapidarmente, com um apelo a “que, quanto antes, outros triunfem onde nós fomos vencidos”.

A maioria dos réus foi condenada em penas relativamente curtas, saindo em liberdade ao fim de pouco tempo. Manuel Serra apanhou a pena mais pesada, de dez anos, e logo a seguir Varela Gomes, uma de seis anos. O seu protagonismo na vida política portuguesa tinha durado dois meses e prolongara-se até ao final do julgamento. Cumpriu a pena e foi libertado em 1968, meses antes de Salazar cair da cadeira e ficar incapacitado.

A chamada “Primavera marcelista” pouco lhe aproveitou, porque a PIDE continuava a vigiar cada um dos seus passos, com plantões ininterruptos das 9 h da manhã à 1 h da madrugada, e a vigiar toda a sua família. Nos seis anos de liberdade condicionada que se seguiram, iria lutar pela vida em diversos empregos e retomar nos núcleos da CDE uma actividade política que lhe estava expressamente proibida.


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sexta-feira, 18 de abril de 2025

Brasil e Portugal iniciam grupo de trabalho para ampliar impacto do português no mundo

Brasil e Portugal iniciam grupo de trabalho para ampliar impacto do português no mundo

Por Monica Grayley*

16 Abril 2025 Cultura e educação

Unesco marca Dia Mundial da Língua Portuguesa, em 5 de maio, celebrando diversidade cultural e criação de pontes diplomáticas; Podcast ONU News conversa com diretor do Instituto Guimarães Rosa sobre cooperação da entidade com Instituto Camões, de Portugal, e decisões de elevar status do idioma no cenário internacional.

Em 5 de maio, a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, Unesco, irá comemorar o Dia Mundial da Língua Portuguesa. A data foi aprovada na 40ª Sessão da Conferência Geral da agência da ONU, em 2019. A primeira celebração, no entanto, em 2020, teve que ocorrer de forma virtual por causa da pandemia da Covid19, naquele ano.

Para este quinto aniversário do Dia Mundial, em 2025, o Podcast ONU News prepara uma série de entrevistas com representantes de países lusófonos e de estudantes do idioma como língua estrangeira ou segunda língua.


Guimarães Rosa e Camões em parceria

O primeiro entrevistado é o diretor do Instituto Guimarães Rosa, o embaixador Marco Antonio Nakata.

O IGR foi criado em 2022, pelo Brasil, exatamente 30 anos após a fundação do Camões - Instituto da Cooperação e da Língua que é gerido por Portugal. Ao todo, o instituto brasileiro tem mais de 40 leitorados e 24 unidades em quatro continentes.

De Brasília, o diretor do Guimarães Rosa falou dos esforços para promover a língua comum com a formação de um grupo de trabalho das diplomacias de ambas as nações.

“Por exemplo, para citar um projeto concreto que estamos fazendo junto com o Instituto Camões, nós devemos fazer uma colaboração com eles em espaços que um ou outro não tenha uma atuação muito forte. Por exemplo, na Ásia, normalmente, o Instituto Camões tem espaços físicos mais importantes do que o Instituto Guimarães Rosa.  As unidades nossas não mais discretas no continente asiático. No continente sul-americano, por outro lado, o Instituto Guimarães Rosa é mais presente e tem inclusive unidades muito importantes. Nós temos auditório para fazer apresentações musicais etc e o Instituto Camões não tem.”

Jovens estudantes da Universidade Nacional de Timor-Leste

Unifeed/Jorge Rodriguez

 

Jovens estudantes da Universidade Nacional de Timor-Leste

União Europeia e União Africana

Idioma oficial de 10 países e territórios com uma população de mais de 280 milhões de pessoas, o português é considerado a quinta ou sexta língua mais falada do mundo. Está presente em várias organizações internacionais e regionais como língua oficial incluindo a União Africana, a União Europeia, o Mercosul e outros.

O diretor do Instituto Guimarães Rosa contou que o objetivo do Brasil é unir forças com Portugal para aumentar a presença do português na ONU no papel de língua oficial. Marco Antonio Nakata:

“O primeiro passo que vamos tomar com relação a isso é a criação de um grupo de trabalho que vai envolver, evidentemente, diversos segmentos das Chancelarias Portuguesa e Brasileira. Uma das áreas é a área cultural então tanto o Instituto Camões como o Guimarães Rosa estarão envolvidos. Mas também vamos envolver a área geográfica de Portugal e Brasil. Nós vamos envolver a Divisão de Nações Unidas de ambas as Chancelarias. E vamos envolver também as delegações permanentes do Brasil e de Portugal nas Nações Unidas.”

Dia da Língua Portuguesa é marcado em 5 de maio

Cplp

Com as Grandes Navegações, no século 15, a língua de Portugal passou pelos quatro cantos do mundo. É considerada a primeira a ser globalizada.

Hoje, ela é também a primeira ou segunda língua das diásporas lusófonas espalhadas por países como África do Sul, Estados Unidos, França, Japão e Luxemburgo.

Ao comentar a chegada do quinto aniversário do Dia Mundial pela Unesco, no próximo mês, o diretor do Instituto Guimarães Rosa diz que vale a pena aprender o idioma.

“Com o conhecimento do português, você vai ter um conhecimento muito amplo da cultura brasileira, da cultura portuguesa e de todos os países de língua portuguesa na África. Então, eu acho que a pessoa só teria a ganhar ao aprender o português.”

O Dia da Língua Portuguesa, em 5 de maio, foi criado pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa em 2009 e passou a Dia Mundial após a resolução da Unesco, 10 anos depois, em 2019.

Soundcloud

Leia na íntegra a entrevista do diretor do Instituto Guimarães Rosa que abre uma série de conversas sobre o idioma até o Dia Mundial da Língua Portuguesa, neste 5 de maio.

ONU News:  O que é o Instituto Guimarães Rosa, quantos são pelo mundo, quantos alunos e qual é a importância para a promoção da língua?

Marco Antonio Nakata: O Instituto Guimarães Rosa é baseado em Brasília, dentro do Ministério das Relações Exteriores. Ele é o sucedâneo do Departamento Cultural do Itamaraty e tem uma história de mais de 70 anos de diplomacia cultural. Ele tem hoje cerca de 24 unidades distribuídas pelo mundo inteiro e nós estamos ampliando essa rede a partir deste ano e pretendemos alcançar cidades e países através do mundo inteiro. A função do Instituo Guimarães Rosa é promover a língua portuguesa, mas também tem outras três vertentes que são: a cooperação educacional, internacional evidentemente, também tem a divulgação da cultura brasileira em todas as suas vertentes, em vários segmentos, e finalmente - e não menos importante -, os temas multilaterais culturais, que envolvem, por exemplo, projetos junto à Unesco, junto ao G20, ao Mercosul cultural, Brics cultural e assim sucessivamente.

ON: O senhor esteve recentemente na Europa fechando uma parceria com o Instituto Cervantes, da Espanha, mas também em conversações com o Instituto Camões. Esses são institutos que já têm década de experiência. O Cervantes foi criado em 1991 e o Camões como Instituto da Cooperação e da Língua, um ano depois. Como essa parceria vai fortalecer o papel do Guimarães Rosa?

MAN: Nós temos tentado criar e assinar memorandos de entendimento com várias instituições. Entre elas com o Camões, que assinamos no ano passado, e este ano com o Instituto Cervantes. A ideia é que a gente tenha ações concretas, projetos concretos de colaboração de forma a ter uma sinergia na atuação da diplomacia cultura entre o Instituto Guimarães Rosa e esses institutos que você citou que são experientes e com longa tradição. Por exemplo, para citar um projeto concreto que estamos fazendo junto com o Instituto Camões, nós devemos fazer uma colaboração com eles em espaços que um ou outro não tenha uma atuação muito forte. Por exemplo, na Ásia, normalmente, o Instituto Camões tem espaços físicos mais importantes do que o Instituto Guimarães Rosa.  As unidades nossas não mais discretas no continente asiático. No continente sul-americano, por outro lado, o Instituto Guimarães Rosa é mais presente e tem inclusive unidades muito importantes. Nós temos auditório para fazer apresentações musicais etc e o Instituto Camões não tem.

Então nossa ideia é de que haja uma colaboração entre as instituições de forma que eles possam se beneficiar de espaços físicos que nós temos e nós também possamos nos beneficiar de espaços físicos que não temos. Evidentemente, cria uma aproximação maior entre os dois países e uma coordenação melhor no ensino da língua portuguesa.

ON: Embaixador, essa é uma cooperação que o próprio Camões já tem com outros institutos como a Aliança Francesa, na África do Sul. E todos saem ganhando porque há custos envolvidos com a operação de uma sede e dois institutos podem cooperar. No caso específico do Guimarães Rosa com o Camões. Haverá aulas com professores portugueses, professores brasileiros. Eles vão intercalar? Como vai se dar isso na prática?

MAN: Não. Na prática, nesse primeiro momento a ideia não é que haja um aproveitamento do ensino da língua portuguesa.  É mais uma questão dos eventos culturais acadêmicos, seminários, conferências etc. Nós não partimos ainda para a questão do compartilhamento do espaço físico para o ensino do português. Para isso, tanto o Camões quanto o IGR temos uma rede ampla de leitores em diversas universidades do mundo inteiro. E em algumas delas, nós temos tanto a vertente portuguesa quanto a vertente brasileira. Por exemplo, no caso do Brasil, do IGR, nós temos pouco mais de 40 leitores espalhados em diversas universidades do mundo em todos os continentes. São pessoas do mais alto nível com pós-graduação, com larga experiência do ensino do português, da cultura brasileira. E eles ajudam muito a difusão da cultura brasileira, da história do Brasil etc porque eles ensinam em suas aulas não só a língua portuguesa, mas todo o contexto cultural, histórico e político do Brasil.

Educação no assentamento de refugiados Lóvua, em Angola

© Acnur/Omotola Akindipe

 

Educação no assentamento de refugiados Lóvua, em Angola

ON: Portugal e Brasil acabam de fazer a 14ª. Cimeira Luso-Brasileira que ocorreu em Brasília. E nessa Cimeira, foi decido, embaixador, que haveria mais cooperação de ambos os países para uma proposta que Portugal já tem delineada em seu 24º Programa de Governo, que é fazer do português língua oficial das Nações Unidas até 2030. O Brasil apoia essa proposta?

MAN: Sim. Nós apoiamos essa proposta. Inclusive o Grupo de Trabalho de Cultura e de Língua Portuguesa conversou sobre esse tema. O primeiro passo que vamos tomar com relação a isso é a criação de um grupo de trabalho que vai envolver, evidentemente, diversos segmentos das Chancelarias Portuguesa e Brasileira. Uma das áreas é a área cultural então tanto o Instituto Camões como o Guimarães Rosa estarão envolvidos. Mas também vamos envolver a área geográfica de Portugal e Brasil. Nós vamos envolver a Divisão de Nações Unidas de ambas as Chancelarias. E vamos envolver também as delegações permanentes do Brasil e de Portugal nas Nações Unidas

É um grupo de trabalho importante porque tem de haver uma articulação muito forte entre todas essas áreas para que a gente possa efetivamente levar a cabo esse projeto. Não é um projeto simples. É um projeto bastante ambicioso, mas nós consideramos muito importante.

ON: E é um projeto, e uma decisão que depende dos Estados-membros da ONU. Não é verdade? Como é feita essa concertação diplomática para convencer que uma língua se torne língua oficial?

MAN: Esse é um longo processo que implica treinamento de intérpretes, tradutores. Implica também uma adaptação da linguagem dos tradutores e dos intérpretes à linguagem diplomática das Nações Unidas. Evidentemente, vai envolver a delegação do Brasil e de Portugal no sentido de saber quais são as exigências das Nações Unidas para que a gente possa levar adiante esse projeto. Eu acho que é um projeto muito importante. Em outras instâncias internacionais, nós temos uma participação seja como língua de trabalho, ou seja, como língua que depois pode passar ao status de língua oficial. Mas eu acho que Nações Unidas, é a organização mais importante desse ponto de vista. Nós estamos muito entusiasmados como esse projeto e vamos começar a criar esse grupo em breve e espero ter resultados concretos.

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Cplp, conta com o apoio de Portugal na União Europeia para avançar questões que são relevantes para o bloco

ONU News/Alexandre Soares

 

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Cplp, conta com o apoio de Portugal na União Europeia para avançar questões que são relevantes para o bloco

ON: A criação do Guimarães Rosa ocorre num momento de mais interesse pela língua portuguesa. Ele reúne os leitorados que já existiam há dezenas de anos pelo mundo e bem administrados pelo Brasil. Mas qual é a necessidade de se formalizar um instituto nesse momento em nível de política da língua, realizada pelo Brasil, e pelos demais países na CPLP?

MAN: Eu queria dizer umas palavras sobre o programa de leitorado que é um dos mais longevos de diplomacia cultural do Brasil. Tem mais de 70 anos. E houve pessoas extremamente importantes como o próprio Sergio Buarque de Holanda que foi um leitor, Celso Cunha foi leitor. Houve grandes personalidades, intelectuais que foram leitores brasileiros. É fundamental porque realmente é uma política que ajuda a difundir a cultura brasileira. São pessoas que criam laços acadêmicos, culturais muito fortes com outras universidades. E permitem que haja um intercâmbio tanto cultural quanto linguístico também com outros países. Eu acho que a atuação nossa em universidades, na questão educacional é fundamental.  O atual grupo de leitores brasileiros é realmente do mais alto nível. Eu os conheci numa reunião que fizemos em Maputo, Moçambique, no ano passado, e fiquei muito impressionado. São pessoas assim muito empenhadas em difundir o Brasil, a língua portuguesa, e pessoas do mais alto nível acadêmico e intelectual. Então eu acho que é um investimento que nós fazemos para difundir a cultura brasileira, mais do que reconhecido e mais do que necessário.

ON: Embaixador, dia 5 de maio será o Dia Mundial da Língua Portuguesa. E é uma festa em todo mundo porque essa língua vai das Américas à Ásia. Ela vai de Norte a Sul. Ela é falada por 280 milhões de pessoas em pelo menos 10 países porque nós temos os nove países membros da CPLP, mas também temos a Região Administrativa de Macau, na China, onde português é língua oficial até 2049. Então, temos 10 países e territórios, e claro, as diásporas pelo mundo porque há cabo-verdianos, portugueses, brasileiros, moçambicanos em várias partes do mundo. Vamos fazer de conta que eu sou estrangeira e quero aprender português. Por que vale a pena falar português?

MAN: Bom, uma das razões você já deu.  Você terá oportunidade de ter uma comunicação com milhões de pessoas, de diferentes culturas, de diferentes continentes. Só isso já é uma razão importante. Mas eu diria que do ponto de vista cultural, o fato de você aprender o português vai abrir um mundo de cultura, de literatura, de música que, efetivamente, vai enriquecer espiritualmente e culturalmente a sua vida. Por exemplo, escritores como Camões, como José Saramago, no caso de Portugal Eça de Queirós, Fernando Pessoa. E no caso do Brasil, o próprio Guimarães Rosa, Machado de Assis, Clarice Lispector, enfim, dezenas, centenas de outros, também vários africanos de língua portuguesa que são espetaculares. Só isso já justificaria o fato de você aprender uma língua que é muito bonita, muito sonora com vertentes diferentes de sotaque. Mesmo no Brasil tem sotaques muito diversos. Também do ponto de vista musical, do ponto de vista do cinema, da música, arquitetura. Com o conhecimento do português, você vai ter um conhecimento muito amplo da cultura brasileira, da cultura portuguesa e de todos os países de língua portuguesa na África. Então, eu acho que a pessoa só teria a ganhar ao aprender o português.

FIM

*Monica Grayley, da ONU News em Nova Iorque.