sexta-feira, 25 de abril de 2025

SOBRE A REVOLUÇÃO DOS CRAVOS - 25 DE ABRIL DE 1974

 

Revolução dos Cravos: João Varela Gomes e a escala de Brecht

Sobre o coronel revolucionário protagonista da Revolta de Beja de 1962 e da Revolução dos Cravos em 1974


António Louçã25 abr 2025, 08:53

Foto: Coronel Varela Gomes. (Eduardo Baião/DN)

Via Centenário Varela

Os fracos não lutam. Os fortes lutam talvez durante uma hora. Os que ainda são mais fortes lutam durante vários anos. Mas os mais fortes lutam durante toda a vida. Esses são imprescindíveis.

(Bertolt Brecht)

No lapso de um mês, cumprem-se 50 anos do 25 de Abril e, agora, 100 anos do nascimento de João Varela Gomes. Entre os ecos da primeira comemoração passa, naturalmente, despercebida a segunda. Mas a primeira comemoração tem-se limitado a uma superficial hagiografia dos capitães de Abril e a uma diabolização das forças sociais que quiseram levar mais longe a revolução. Se não quisermos ficar-nos por esse discurso oficial, o centenário de Varela Gomes é uma ocasião imperdível para evocar uma luta iniciada antes do 25 de Abril e prolongada muito para lá do 25 de Novembro.

Nascido em 24 de maio de 1924, João Varela Gomes parecia destinado a uma brilhante carreira militar. Mas em 1948 partiu para uma comissão em Goa e o seu espírito crítico logo chocou com as realidades do colonialismo. Em 1956 foi nomeado para o curso do Estado-Maior, destacou-se no primeiro ano pela sua invulgar capacidade e cultura, mas logo recusou as oportunidades proporcionadas por essa carreira. Estado-Maior era, para ele, sinônimo de “intriga palaciana”.

A vaga delgadista e a Revolta de Beja

O início da campanha eleitoral de Humberto Delgado foi encontrar Varela Gomes como capitão em Santa Margarida, próximo de Tomar. As grandes manifestações de 14 e 16 de maio de 1958, no Porto e em Lisboa, tiveram impacto em todo o país e encorajaram-no a intensificar a agitação entre os seus contatos militares. As manifestações da campanha, e depois, a partir de 8 de junho, a vaga de greves espontâneas contra a fraude eleitoral criaram, como Álvaro Cunhal viria a admitir, “uma situação pré-insurreccional” que o PCP não soube conduzir à vitória.

A frustração das expectativas de 1958 deixava sobre a mesa o dilema de continuar a aproveitar as margens de ação legal cada vez mais estreitas, ou de conspirar com vista a uma saída putschista. Nos três anos seguintes, Varela Gomes participou pacientemente na actividade conspirativa que fervilhava nas Forças Armadas, mas parece tê-lo feito sempre com o intuito de acumular forças que pudessem intervir em condições mais propícias. Não tratou nunca de precipitar uma ação militar e, em discussão com Humberto Delgado, fez mesmo contravapor à atitude urgentista do general.

Nos três anos de ressaca da vaga delgadista de 1958, o impulso mais notório de Varela Gomes foi o de retomar a agitação de massas, aproveitando as mais pequenas brechas que lhe permitissem agir à luz do dia. Esse impulso manifestou-se principalmente no final de 1961. A guerra de libertação tinha começado em Angola e o ambiente político em Portugal era de fortaleza sitiada. A oposição, enfraquecida por uma vaga de prisões, ia concorrer às eleições legislativas com as últimas margens de luta legal a serem drasticamente cerceadas.

Nos últimos meses de 1961, Delgado já se encontrava no exílio e o calendário determinava a realização de mais uma farsa eleitoral para a Assembleia Nacional. Varela Gomes aceitou a candidatura nas listas da oposição, tornando-se rapidamente o grande agitador da campanha e a principal figura pública da oposição. Percorreu cidades e vilas, segundo havia de recordar mais tarde Maria Eugénia, a companheira da sua vida, discursando “às vezes em barracões, em cima de um carro ou de uma camioneta”. A imprensa fascista não se enganou e rapidamente o escolheu, entre os 86 candidatos oposicionistas, como alvo dileto das suas tiradas mais vitriólicas. Mesmo a disciplinada militância do PCP se sentiu atraída pelo estilo enérgico deste pós-delgadismo, mais jovem, desassombrado e radical.

Mas, a pretexto da guerra, o regime cerrava fileiras, silenciava dissidências e matizes, aliciava os republicanos mais nacionalistas. Dez dias antes da votação, a imprensa fascista já dizia despudoradamente que o partido único tinha uma maioria absoluta garantida na Assembleia Nacional. Em 12 de novembro a oposição decidiu boicotar as eleições. Nas semanas seguintes, a escalada repressiva custou a vida ao operário comunista Cândido Capilé, abatido durante uma manifestação, e ao funcionário comunista José Dias Coelho, assassinado pela PIDE em 19 de dezembro.

Quando Manuel Serra chegou a Portugal com ordens de Humberto Delgado para iniciar um movimento revolucionário antes do fim desse ano, Varela Gomes tratou de dissuadi-lo de um plano que considerava irrealista. Ele próprio se encontrava sob cerrada marcação da PIDE e sob uma pressão acrescida da hierarquia do Exército que o intimava a oferecer-se como voluntário para a guerra, se quisesse fazer esquecer o seu papel na campanha eleitoral. Ainda assim, Varela Gomes aceitou discutir com Manuel Serra o plano deste para a tomada do RI 3, em Beja.

Para o efeito, tinha Serra organizado largas dezenas de civis, em grande parte operários da margem sul ou do Bairro da Liberdade, em Lisboa. Mas a preparação deixava a desejar: os insurretos quase não tinham armas e dependiam das que conseguissem no assalto ao quartel. Na sua maioria, mal sabiam manejá-las. Varela Gomes começou por negar-se a uma iniciativa em que via pouco realismo e muita diletância. Na discussão que se foi desenvolvendo, Serra ameaçou a certa altura avançar com os civis, sem a participação de Varela Gomes, sujeitando-os todos ao que poderia ser um derramamento de sangue infrutífero.

Neste impasse, surgiu José Hipólito Santos, do grupo “Seara Nova”, informando Varela Gomes sobre a disponibilidade de oficiais do RI 3 para agirem sob as ordens deste. Mais tarde, Varela Gomes viria sempre a apontar a revelação da disponibilidade de três oficiais da unidade como o “clic” que o decidiu a assumir a direcção operacional da revolta. Mas podemos admitir que a quase-chantagem de Serra tenha calado fundo no seu espírito e o tenha feito procurar um pretexto para arriscar tudo numa iniciativa com escassíssimas possibilidades de êxito, como ele próprio intuíra. Na verdade, o pretexto era frágil e os oficiais recrutados à pressa para o movimento também não estavam plenamente convencidos. Com os três do quartel de Beja e mais três que o acompanharam de Lisboa, teve Varela Gomes intensas discussões, literalmente até ao último minuto, para evitar que desistissem.

O plano consistia em tomar o quartel e aí instalar Humberto Delgado. O general, entrando clandestinamente em Portugal, assumiria as rédeas da revolta com a legitimidade do apoio popular verificado durante a campanha presidencial. De Beja deveriam partir colunas para Lisboa e para o Algarve, procedendo pelo caminho ao “levantamento das populações, chamadas com a ajuda de megafones, a quem seriam distribuídas armas”, segundo José Hipólito dos Santos. Mais do que os comandantes de unidades comprometidos com Varela Gomes, que na hora da verdade podiam cumprir melhor ou pior os seus compromissos, contava-se sobretudo com o povo que três anos antes tinha estado na rua com Humberto Delgado.

Na madrugada de 1 de janeiro de 1962, os militares entraram pela Porta de Armas, de acordo com o plano, mas logo se depararam com a primeira dificuldade, que era a presença na unidade do major Henrique Calapez Martins, legionário irredutível e segundo comandante do regimento. A iniciativa de Varela Gomes, de empreender ele próprio a captura daquele oficial, gorou-se por motivos bem conhecidos: quando tentou dialogar com Calapez para obter a sua rendição, foi recebido a tiro e sofreu dois ferimentos graves. Apesar de uma parte dos civis ter conseguido entrar no quartel, apoderando-se da Casa da Guarda e dominando a sua guarnição, os graves ferimentos sofridos por Varela Gomes decapitaram a revolta e rapidamente inviabilizaram qualquer nova iniciativa dos insurretos. O alarme entretanto estava dado e os insurretos foram na sua quase totalidade capturados numa extensa ofensiva policial. No balanço final, havia dois insurretos mortos, dois feridos e, do lado governamental, o sub-secretário de Estado do Exército atingido mortalmente por “fogo amigo”.

Nos dias seguintes, mesmo sem se poder vislumbrar qualquer reanimação do movimento insurrecional, a ditadura foi incapaz de esconder o seu nervosismo. Os pasquins fascistas mais notórios, como A Voz, alarmaram-se com a composição predominantemente operária do grupo revolucionário e chegaram a sugerir que os seus membros fossem “passados pelas armas”. Mesmo jornais relativamente conspícuos, como O Século e o Diário de Notícias, reclamavam as medidas mais extremas contra a alegada inspiração cubana da revolta. Enfim, a perturbação que atingiu a pirâmide fascista da base até ao topo acabou por traduzir-se no facto de Salazar, afônico, ter precisado de mandar ler ao seu acólito Mário de Figueiredo a comunicação que tinha para apresentar à Assembleia Nacional.

O ano iniciado com a revolta de Beja foi ainda o da primeira grande crise estudantil. Mas depois calaram-se os últimos ecos da vaga delgadista, e, em 1964, a pequena vanguarda que empreendera a Revolta de Beja ia ser julgada num ambiente desfavorável. O julgamento encontrava-se sob uma observação invulgarmente atenta da imprensa internacional e a ditadura encenava uma face paternalista e conciliatória para mostrar ao mundo que podia permitir-se o luxo de uma relativa brandura. Mas a generalidade dos insurretos levados a tribunal não se deixou confundir com cantos de sereia e manteve uma atitude digna.

Varela Gomes adoptou um discurso combativo, inspirando-lhes contenção e firmeza. Ao magistrado que, sugerindo-lhe uma declaração de arrependimento, lhe perguntava se voltaria a pegar em armas contra o regime, respondeu ele, apontando os pides que enchiam a assistência, que isso seria, “naquelas circunstâncias”, impossível. No discurso final, afirmou que aquele banco dos réus sempre cheio de gente era o refúgio da honra num país que resistia. Acrescentou depois: “Levei até à última fronteira da legalidade o meu protesto, pouco me tendo surpreendido ver confirmada a inutilidade de uma oposição leal, a peito descoberto. Nunca um governo desta espécie policial e predatória abandonou o poder a não ser expulso pela força”. E concluiu, lapidarmente, com um apelo a “que, quanto antes, outros triunfem onde nós fomos vencidos”.

A maioria dos réus foi condenada em penas relativamente curtas, saindo em liberdade ao fim de pouco tempo. Manuel Serra apanhou a pena mais pesada, de dez anos, e logo a seguir Varela Gomes, uma de seis anos. O seu protagonismo na vida política portuguesa tinha durado dois meses e prolongara-se até ao final do julgamento. Cumpriu a pena e foi libertado em 1968, meses antes de Salazar cair da cadeira e ficar incapacitado.

A chamada “Primavera marcelista” pouco lhe aproveitou, porque a PIDE continuava a vigiar cada um dos seus passos, com plantões ininterruptos das 9 h da manhã à 1 h da madrugada, e a vigiar toda a sua família. Nos seis anos de liberdade condicionada que se seguiram, iria lutar pela vida em diversos empregos e retomar nos núcleos da CDE uma actividade política que lhe estava expressamente proibida.


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